Nossa tese
é que as sociedades atuais –globalizadas e em rápida mudança– geram profundos
“fenômenos inter”, os quais constituem algumas de suas características mais
complexas, definidoras e causadoras de novos desafios e conflitos.
Concretamente, muitos antagonismos sociais, tanto no plano nacional como no
internacional, aparecem cada vez mais vinculados a esses novos “fenômenos
inter”.
Usamos o
termo “fenômenos inter", não só por causa da flexão morfológica semelhante
presente em termos como intercultural, interconstitucional ou interdisciplinar.
Vamos utilizá-lo, sobretudo, porque essa denominação explicita que se
caracterizam pela crescente mescla –em alguns territórios e âmbitos sociais–
de fenômenos culturais, constitucionais ou disciplinares que até agora tendiam
a manter-se separados por fronteiras relativamente claras e estáveis.
São pois
“fenômenos inter” por diagnosticar e exigir complexas estratégias de integração
e diálogo que vão mais além da tolerante justaposição (análise “multi” ou
“poli”) e inclusive do cruzamento pontual das fronteiras (análise “trans”).
Representam um salto qualitativo em relação a muitos processos que são fruto da
concorrência internacional, da mundialização e de um marco geográfico global em
crescente integração. Isso porque não apenas aproximam e fazem competir mais estreitamente
diferentes realidades sociais, políticas, culturais, constitucionais e
disciplinares; mas porque as mesclam tão profundamente que obrigam a
combinações e inter-relações muito mais profundas e complexas.
São,
portanto, “fenômenos inter” e não meramente “multi”, “poli” ou “trans”, já que
obrigam a fortes dialéticas, misturas e integrações. Na intensa mescla que a
atualidade gera, já não basta, por exemplo, um multiculturalismo que
simplesmente justaponha as etnias e os grupos culturais fomentando a tolerância
e a convivência pacífica. Se fazem cada vez mais necessárias estratégias
interculturais baseadas em um efetivo diálogo, no completo reconhecimento mútuo
e em crescentes mestiçagens.
Tampouco
podem bastar a convivência de distintas legitimidades, princípios e concepções
“materiais” de justiça, diversamente aplicadas segundo seus âmbitos ou grupos
sociais. Cada vez mais, sobre essas bases importantes e que representam
benefícios que não podemos negligenciar, há que se construir complexos processos
interconstitucionais que unam aquelas diversas legitimidades e bases jurídicas
em um novo marco –antes não existente– que as faça dialogar e avançar em um
projeto comum que –não obstante– não as dissolva nem subordine
opressivamente.
Também
consideramos que no mundo das disciplinas acadêmicas cada vez se tende a ir
mais além das muito louváveis propostas “multi”, “poli” e inclusive
“transdisciplinares” (Cross-disciplinarity). O complexo mundo turboglobalizado
e a redução dos rendimentos marginais na investigação tradicional, obrigam cada
vez mais a investigações mais interdisciplinares e inclusive – tendencialmente
– pós-disciplinares. Cada vez é maior a necessidade de investigações e de
sínteses que reúnam múltiplas disciplinas ou paradigmas, que cruzem em todas as
direções as fronteiras acadêmicas e que integrem interdisciplinarmente as
problemáticas e teorias.
Causas
Entre as
causas desses “fenômenos inter", tão importantes para o presente, podemos
destacar:
Em primeiro
lugar, existem razões econômicas como: os deslocamentos industriais, a
crescente dificuldade para controlar os fluxos financeiros globais, a imparável
concorrência econômica e tecnológica internacional, etc.
Em segundo
lugar, existem causas geopolíticas, que incluem: mudança de hegemonias;
desaceleração no primeiro mundo (Estados Unidos em crescente déficit, a apatia
da "velha Europa", a persistente crise nos chamados PIGS); emergência
de novas potências mundiais (como a China) e/ou líderes nas principais regiões
(por exemplo, Brasil e os outros BRICS ou BRIMCK (adicionando Coréia do Sul e
México), países emergentes como a Nigéria...); fraqueza do Estado-nação;
processos de integração regional; choque de civilizações, etc.
Em terceiro
lugar, há causas que surgem de tensões demográficas significativas, tais como a
imigração imparável, a difícil coexistência de demografias em redução (como na
Europa) e em grande expansão em outros países, etc.
Finalmente,
destacamos causas socioculturais: novos tipos de cidadania; politização das
novas gerações de direitos; crescente pressão dos Novos Movimentos Sociais;
estabelecimento de novas identidades nômades e/ou desterritorializadas graças
às Tecnologias da informação e comunicação; etc.
Impacto da
"turboglobalização" e a "sociedade do conhecimento
pós-industrial".
Consideramos
que as causas assinaladas impulsionam processos de mudanças aceleradas, de
novos conflitos e de “fenômenos inter” muito complexos, nosso objetivo de
estudo neste artículo. Sejam eles interculturais, interconstitucionais ou
interdisciplinares, os “fenômenos inter” nascem de essas novas causas,
processos e mecanismos que –para simplificar- denominamos “turboglobalização”
e “sociedade pós-industrial do conhecimento”.
Certamente
hoje qualquer região, território ou população do mundo está competindo com todo
o mundo. Os contatos se realizam à enorme velocidade dos aviões e à superior
velocidade das decisões econômicas e dos fluxos financeiros. Mas não se trata
apenas do fato de que a Terra é já uma realidade global e que todas suas
regiões e territórios estão em constante relação entre si.
Cada vez
mais, nos mesmos territórios, se encontram e mesclam realidades que até pouco
basicamente se davam em âmbitos territoriais que – quando muito – tão somente
se superpunham em zonas disputadas e fronteiriças. Hoje, ao revés, compartem e
disputam um mesmo território que ademais as novas gerações percebem, com
legitimidade, como totalmente próprio (como tem acontecido com os Pieds-Noirs o
argelinos na França, etc.).
Sem dúvida, as imigrações, mas também as novas
Tecnologias da informação e comunicação e a Sociedade em Rede fazem com que as
antigas territorialidades se rompam e que culturas ou etnias se superponham
crescentemente, compartam territórios (ali onde antes cada uma era muito
hegemônica e as outras muito minoritárias) e inclusive interajam complexamente
na identidade das pessoas. Por exemplo, eu mesmo sou de língua materna catalã,
mas grande parte de mina produção intelectual é em castelhano – pois sou
bilíngue – e em grande medida esta é a minha língua internacional
(especialmente em contextos irmãos, como aqui em Portugal o em Brasil).
Portanto, a
atual sociedade do risco (teorizada por Ulrich Beck) vem profundamente marcada
pelos macroprocessos e causas mencionadas. Por um lado, o mundo se tornou
menor, mais inter-relacionado e dependente; por outro, o mundo está se tornando
mais diverso territorialmente, culturalmente, do juridicamente, etnicamente –e
inclusive– disciplinarmente. Por isso afloram os mencionados “fenômenos
inter”, e cremos que deve-se encará-los indo mais além de propostas “multi”,
“poli” ou “trans”. Cremos que estes, apesar de serem enfoques louváveis, se
mostram atualmente limitados e superados pelos acontecimentos do largo prazo.
Destarte,
devemos apostar por estratégias mais complexas, ações mais difíceis e políticas
mais exigentes que, por isso mesmo, soem oferecer melhores resultados a longo
prazo. Entre elas destacaremos aqui as interculturais, interconstitucionais e
inclusive as interdisciplinares. Analisemos brevemente esses dois primeiros
âmbitos.
Do
multiculturalismo ao interculturalismo
Comecemos
com o multiculturalismo. Sem dúvida alguma, são valiosas as propostas do “multi”,
“poli” e inclusive do “trans”-cultural e das políticas baseadas na mera
tolerância, respeito, pacificação e negociação. Apostam legitimamente em
facilitar a convivência e evitar o enfrentamento; gerindo, negociando,
pacificando e delimitando as diversas realidades econômicas, demográficas,
sociais, políticas e culturais que hoje –como dizíamos- estão
irremissivelmente em contato e superposição.
Pois bem,
especialmente quando já não se limitam a realidades culturais adjacentes, mas
sim realidades que compartem, se superpõe ou disputam um mesmo território, as
políticas multiculturais de tolerância, respeito, pacificação e negociação não
asseguram o desarmamento dos conflitos –a médio e longo prazo– e no mais das
vezes acabam por serem superadas.
Devem ser,
portanto, complementadas por ações ou políticas mais complexas e profundas que
podemos qualificar de “inter”. Com efeito, a negociação e a tolerância “multi”,
“poli” ou “trans”cultural devem ser desenvolvidas INTERculturalmente. As
diversas realidades étnicas e as identidades culturais devem projetar-se em um
macroprocesso de reconhecimento mútuo que comporte autênticos diálogos e ações
de auto-constituição mútua.
Pois bem,
como vem sendo teorizado desde Hegel até Axel Honneth, não se trata tanto de
gerar uma realidade ou identidade comum que substitua as precedentes. Sobretudo, essas identidades devem incorporar
em si mesmas o reconhecimento da alteridade alheia, em condição simétrica,
equilibrada e justa com o reconhecimento da alteridade própria.
Isto inclui
definir um projeto (comum, mas não monolítico) embasado no reconhecimento da
diversidade compartida e na defesa de uma identidade comum, centrada
precisamente em compartir a riqueza da diversidade. Como disse
paradigmaticamente o zapatismo: precisamente porque somos iguais é que podemos
ser diversos. Podemos traduzi-lo aqui com a fórmula: precisamente porque nos
reconhecemos e construímos interculturalmente é que podemos ser e garantimos o
reconhecimento das respectivas diversidades.
Interconstitucionalidade
mais além do “multi”, “poli” e “trans”
Brevemente,
pois não pretendo ensinar-lhes nada que já não saibam, direi algo também a
respeito da interconstitucionalidade. A crescente integração de amplas zonas
territoriais, que incluem diversos Estados-nações, com seus respectivos marcos
teóricos jurídico-normativos, provoca significativos processos de
interconstitucionalidade.
Também aqui há importantes apostas para limitar a integração jurídico-normativa a processos de mera coexistência ou tradução “poli”, “multi” e, nos casos mais valentes, transconstitucional o transjuridiscional (p.e. o Laboratório Internacional de Pesquisa sobre Transjuridicidade -UFPB-). Quer dizer, se administra e promove a convivência jurídica pacífica e com a mínima conflitualidade de diversas legitimidades normativas e “justiças materiais”. Isso é muito valioso e –como vimos com a multiculturalidade– se formula a partir de necessários valores de tolerância, respeito e negociação pacífica.
Pois bem,
isso no entanto parece que não é suficiente a longo prazo, quando diversos
elencos de direitos humanos (em princípio procedentes de “culturas”
diferenciadas) convergem (mas também se chocam antagonicamente) para definir um
elenco comum de direitos fundamentais (ou seja: efetivamente reconhecidos,
incorporados e assegurados pelo nascente marco constitucional
compartilhado). Como sabem, se trata de
um tipo cada vez mais relevante de justiça “material” e/ou transicional para
contextos de crescente integração política e jurídica (como sucede na Unión
Europea ou em Estados com importantes
minorias étnico-culturais). Assim devem superar-se o que o Professor Luiz
Fernando Coelho chama antinomias dos Direitos Humanos que nascem do choque de
diversas constitucionalidades que devem interconstitucionalizar-se.
Acreditamos
que sí se radicalizan los apuntados procesos de integração politica, jurídica,
normativa e constitucional, parece que –a um largo prazo- no hay suficiente con
las valiosas propuestas multi-, poli- e transconstitucionais.
Por isto se
devem tentar realizar os muito complexos e difíceis processos de
interconstitucionalidade. Em tais casos, pois, não se trata tanto de uma
justaposição mas de uma autêntica mescla em um mesmo território, com a complexa
atividade que ele comporta.
Desta
forma, também aqui o salto a os “fenômenos inter” nos parece inevitável.
Estarão de acordo que este é o caso, por exemplo, da Comunidade Europea. O
atual processo europeu de integração é todavia um marco jurídico político
incompleto. Nele os juízes tiveram que ir, muitas vezes, para muito além dos
próprios políticos, pois los políticos se bloquejam por as dinámicas do
Estado-Nação.
Pessoalmente,
ante os novos desafios já interconstitucionais advogo –como já o fiz
anteriormente em sede de interculturalidade– por fundamentar o processo no
reconhecimento mútuo e a partir de processos dialogados de auto-constituição
mútua. Sem dúvida, e por exemplo na Comunidade Europea, há que se gerar um
marco constitucional comum e superior ao dos Estados-nação. Mas, creio, isto
deve realizar-se sobre a base do reconhecimento das alteridades reunidas que
devem reconhecer reciprocamente aquelas alteridades que decidam conservar.
Portanto, e
ainda que seja difícil levar-lhe à prática, o novo marco interconstitucional
comum não deve ser abstrato nem monolítico, mas sim bem concreto, material e
internamente diverso. Em termos hegelianos, há que se superar dialeticamente
tanto a identidade indiferenciada e abstrata como as particularidades opostas
negativamente, e fazê-lo constituindo uma nova identidade concreta e
adequadamente diferenciada internamente.
Conclusão
Somos
conscientes das dificuldades e dos importantes saltos ontológicos,
epistemológicos, metodológicos e disciplinares implicados em nossa analogia
entre interculturalidade e interconstitucionalidade. Segundo nossa análise
macrofilosófica, acreditamos detectar bastantes impulsos e causas
concomitantes, mas, em todo caso, se trata de uma perspectiva aberta que exige
muito mais trabalho e a colaboração desde distintos âmbitos acadêmicos além de
–obviamente– abertura e grandeza de olhar.
Enfim, e
para terminar, apenas acrescentarei que desejo uma integração europeia que
supere os atuais bloqueios e a crescente aversão populista eurocética. Para
isto, a Europa deve dotar-se de um marco jurídico-normativo interconstitucional
e intercultural, baseado no reconhecimento de que a nova igualdade e unidade
tem, como condição de possibilidade, o recíproco respeito da diversidade e do
princípio de subsidiariedade –hoje mais reivindicados que sistematicamente
aplicados-.
Tudo indica
que, apenas a partir do reconhecimento recíproco da diversidade e do
escrupuloso respeito à autonomia das decisões segundo o princípio da
subsidiariedade, se avançará sólida e pacificamente a longo prazo até uma ordem
internacional mais sólida e justa. Sei que isto é muito difícil, mas só assim a
Europa (e talvez amanhã a Terra inteira) poderá caminhar verdadeiramente no
sentido de uma justa garantia interconstitucional, como realização
histórico-efetiva de algo parecido com essa "constituição cosmopolita”,
que todavia é hoje ainda uma quimera como era nos tempos de Kant. Creio que
para isto é imprescindível atender aos “fenômenos inter” e, em especial às
mencionadas dinâmicas interculturais, interconstitucionais e, no fundo, também
interdisciplinares.
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