Para
começar traçaremos um modelo macrofilosófico mínimo que permita orientarmo-nos
um pouco no complexíssimo processo que permite passar do mundo medieval ao
moderno. Se trata de apontar a preparação medieval das condições históricas e
sociais que tornaram possível o chamado “avanço europeu” e o que se convencionou
chamar “o sistema dos 500 anos” (Chomsky). Com ele se intentará mostrar que
algumas inovações e influências medievais foram chaves para que fosse possível
a modernidade.
- Uma nova filosofia e uma nova
cultura, que seguem sendo cristãs e influenciadas pela filosofia e pela cultura
medievais, porém que estão cada vez menos submetidas ao controle eclesiástico e
mais aliadas à nova ciência físico-matemática.
- Uma tecnologia militar, especialmente naval e voltada à artilharia, mas também civil, que provém planejamentos pragmático-artesanais e que progressivamente também se aproxima da ciência físico-matemática.
- Um crescentemente poderoso capitalismo comercial e financeiro, nascido nas “comunas” campesinas e nos “burgos” medievais.
- Os nascentes Estados-nação, que, consolidados em torno às casas reais feudais, serão os vencedores dos conflitos políticos medievais e modernos.
- Uma tecnologia militar, especialmente naval e voltada à artilharia, mas também civil, que provém planejamentos pragmático-artesanais e que progressivamente também se aproxima da ciência físico-matemática.
- Um crescentemente poderoso capitalismo comercial e financeiro, nascido nas “comunas” campesinas e nos “burgos” medievais.
- Os nascentes Estados-nação, que, consolidados em torno às casas reais feudais, serão os vencedores dos conflitos políticos medievais e modernos.
O modelo mais básico destaca como
ponto de ruptura mais importante o lento crescimento do capitalismo nas
crescentes cidades medievais. Ali aparecem inovadoras estruturas comerciais, os
grêmios artesanais e empresas financeiras que lideraram as cidades e, pouco a
pouco, se estenderam por todas as partes. Ainda que com grandes resistências,
esse capitalismo influenciará nas instituições políticas estamentais, já que os
senhores feudais – incluindo imperadores, futuras casas reais e a Igreja –
recorrerem a ele para sufragar o conflito e a corrida armamentista que
estabelecem entre si. Assim, certas casas burguesas conseguirão uma influência
política que, por princípio, lhes era negada.
Nos conflitos tardomedievais pela
hegemonia política entre Papado, Império, a aristocracia feudal e as novas
monarquias, estas sairão vencedoras. Eliminarão toda tutela política do Império
e da Igreja, subordinarão e fidelizarão a aristocracia, incorporando-a às
instituições “nacionais” que criam (como o exército e a administração). Para
conseguir tal vitória, as monarquias proto-nacionais se aproximam do poder
econômico da burguesia comercial e financeira, porém mantendo-a relativamente
distante do poder político-militar, sobretudo nas etapas chamadas
“absolutistas”.
Em todo caso as novas monarquias
proto-nacionais promovem o capitalismo e a burguesia cada vez mais
decididamente, ao: outorgar privilégios e “liberdades” às cidades (que por isso
não raro se denominam “livres”, “francas” ou “reais”); vender cargos
administrativos e monopólios econômicos; criar uma “nobreza togada”[i] vinculada
ao serviço direto da monarquia; desmontar o feudalismo econômico e toda a
complexidade jurídica dos chamados “maus usos”;[ii]
seguir políticas mercantilistas e coloniais; criar um “mercado nacional”
unificado; lenta imposição fiscal à nobreza e ao clero (até então isentos)...
Durante esse longo e complexo
processo emerge e se desenvolve uma nova elite culta e alfabetizada, cada vez
mais vinculada aos novos Estados-nação, e que já não é somente de extração
clerical, mas cada vez mais aristocrática e burguesa. Aparecem assim grupos
intelectuais à parte dos votos eclesiásticos e, mesmo, das universidades. Mas
bem estão vinculados às cidades (ajuntamentos...) ou às monarquias (conselhos,
ministros...): humanismo civil, nobreza togada, cargos burocráticos, academias
reais...
É evidente que tais elites são
indiscutivelmente cristãs, porém deixam de ter mentalidade sacerdotal,
substituindo-a por outras mais mundanas, pragmáticas, laicas e secularizadas.
Em um primeiro momento predomina o humanismo de raízes clássicas (com grande
valorização da retórica e da dialética greco-latinas, quatrivium), porém gradualmente predomina uma cultura e uma
filosofia aliadas a uma nova ciência físico-matemática (nascida do trivium) e, até mesmo, às aplicações
tecnológicas mecânicas. Estas últimas haviam sido tradicionalmente
menosprezadas por sua vinculação ao trabalho manual, porém agora serão
revalorizadas, vinculadas à teoria físico-matemática e aceitas como dignas das
elites rurais (facilitando a revolução industrial de finais do século XVIII).
Podemos seguir essa evolução nos
saberes e nos intelectuais que os desenvolveram, seja em uma perspectiva mais
vinculada ao quatrivium humanístico
(desde Dante, Ficino ou Rabelais até Maquiavel, Jean Bodin ou Grotius), seja em
uma perspectiva mais empírica e pragmática (Arnau de Vilanova, Vesalio,
Paracelso, Francis Bacon, Brahe, Boyle...), seja ainda em uma perspectiva mais
vinculada ao trivium e às matemáticas
(desde Copérnico, Kepler, Galilei, Descartes, Boyle ou Hobbes até Leibniz e
Newton). Atesta a progressiva integração desses saberes a evolução de
instituições como a Accademia Nazionale dei Lincei, la Royal Society, la Royal
Académie de Sciences ou a Enciclopedia francesa.
[i] NdT: A
“nobreza togada” constitui-se na nobreza dos palácios, cortesã, paralela à
tradicional nobreza de espada.
[ii] NdT:
“Maus usos senhoriais”, locução utilizada na Idade Média e no Antigo Regime
para designar prestações e obrigações (exações de todos os tipos) dos servos
ante os senhores feudais.
Do artigo “INFLUÊNCIAS
MEDIEVAIS E INOVAÇÕES MODERNAS. UMA ANÁLISE MACROFILOSÓFICA” de Gonçal
Mayos (traído por Karine Salgado) em ENTRE O MEDIEVAL E O MODERNO: REPRESENTAÇÕES E RUPTURAS, FILOSOFIA,
CULTURA E DIREITO de KARINE SALGADO E ARNO DAL RI JÚNIOR (Organizadores),
EDITORA UFMG, BELO HORIZONTE, 2019.
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