Gonçal Mayos PUBLICATIONS

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May 25, 2019

UNIVERSIDADES E ESCOLÁSTICA


            Ainda que seja palpável que a Revolução científica e a filosofia moderna se originaram em grande medida fora das universidades, estas representaram um importante e dinâmico fator diferencial no que diz respeito a outras tradições. Ademais, tal impulso se transmitiu a outros âmbitos, quando as universidades escolásticas se tornaram ultrapassadas a partir do século XV. Pois a universidade medieval tinha
            uma existência jurídica de corporação que a distinguia como comunidade na qual os estudiosos costumavam gozar de liberdade para debater ao seu alvedrio [e que] as autoridades religiosas e políticas toleravam somente porque não podiam esmagá-la em uma Europa fragmentada. A sobrevivência das universidades proporcionou aos cientistas europeus uma comunidade que os apoiava e não encontrava paralelo em nenhuma outra parte do mundo. A Europa já dispunha de mais de 100 universidades em 1500.[i]
            Isso marcou uma notável diferença com outras culturas, como estuda Toby E. Huff (The rise of Early Modern Science. Islam, China and the West, 1993), pois
            Durante dois séculos (1450 – 1650) aproximadamente 87 entre 100 cientistas europeus incluídos no Dictionary os Scientific Biography tinham estudos universitários e a metade deles trabalhava para universidades.[ii]
            Apesar de isso hoje surpreender a alguns, as universidades e a escolástica tardomedieval representam uma importante modernização institucional do saber e da concepção da vida intelectual, ainda que em chave antimundana. O prestigioso medievalista André De Libera destacou que as primeiras comunidades universitárias tinham um ideal e uma prática muito afastados dos hábitos meramente mundanos; porém, que sua origem em núcleos citadinos é claramente oposta às escolas monacais.
            Enquanto que estas buscavam o isolamento social, se radicavam no campo e eram muito mais facilmente controladas pelo abade ou pelo senhor mais próximo, nas universidades, ao contrário, existe a vontade de alcançar uma massa crítica que lhes permita distanciar-se do estrito controle político e doutrinal. Na evolução de umas e outras se consolidou a escolástica e distintos tipos de intelectuais. Pois
            Anselmo e Abelardo podem ser proclamados criadores do método escolástico; porém entre Anselmo e Abelardo há muita distância: Anselmo foi a luz na Abadia de Bec na Normandia; Abelardo foi o mestre atraente e apaixonado da escola de Paris.[iii]
            Embora as universidades cristãs pareçam seguir o modelo da “madrasta” islâmica (de procedência sunní),[iv] por sua etimologia, o termo “universidade” remete a “todo”, “comunidade”, “agrupamento” e “reunião” tanto de mestres e alunos, como das antigas escolas monacais, catedralícias e palatinas (Universitas Scholarum) quando são absorvidas pela nova realidade da cidade e por um novo estilo de intelectuais mais ativos. Comenta-se que a organização universitária medieval coincide em grande medida com a dos grêmios[v] (que etimologicamente significa: regaço, cavidade protetora, seio) e que, portanto, seria a comunidade protetora do grêmio intelectual e do ensino.
            Como disse E. Mitre Fernández (Las claves de la Iglesia en la Edad Media, 1991 e Historia de la Edad Media en Occidente, 1995), em seu início, a universidade foi resultado também do impacto do movimento corporativo geral que, ao final do feudalismo, defendia os interesses de novos setores sociais. Pois as universidades apareceram como associações de professores (Paris) e alunos (Bolonha) que queriam tornar-se independentes dos âmbitos cerrados das escolas monacais e episcopais, nas quais os bispos impunham seus critérios. Conseguiram a isenção das jurisdições locais (mediante bula papal) e seus títulos eram válidos em toda Europa – facilitando uma enorme circulação de mestres e estudantes.
            Com antecedentes na Escola de Direito de Beirut que floresceu entre os séculos III e IV, e a Universidade imperial de Constantinopla fundada em 425, quiçá a primeira universidade é a de Salerno, que se iniciou como centro de tradução e, a partir de 1077 – com Constantino o Africano –, se especializa em medicina.[vi] Porém foram Bolonha[vii] e Paris[viii] os modelos para o resto das universidades.[ix] Destacamos: Vicenza (1204), Arezzo (1215) e Pádua (1229) que são sucessivas fissões de Bolonha; Oxford (1167, famosa em matemáticas e ciências naturais com Grosseteste e Roger Bacon) e Cambridge (1209, fundada por dissidentes de Oxford). As seguem Salamanca, Nápoles, Toulouse, Valencia, Praga, Cracovia, Viena, Heidelberg e muitas outras. Watson calcula que “Entre começos do século XIV e 1500 as universidades europeias passaram de aproximadamente quinze ou vinte a acerca de setenta”.[x]
            Ora, suas iniciais autonomia liberdade organizativa e autonomia doutrinal se viram rapidamente ameaçadas e as universidades tiveram que manter uma luta constante com os poderes públicos e as igrejas locais. Aproveitando a extinção da dinastia imperial Hohenstaufen (1268), Bonifácio VIII vê a oportunidade de impor-se ao Imperador através da bula Unam Sanctam, que proclama a supremacia universal do Papa. Dentro de uma mesma estratégia de reforçar a unidade e o controle papal da Cristandade, Inocêncio III cria a Inquisição, confirma as novas ordens mendicantes que, havendo se adaptado à vida urbana, se convertem na principal fonte do professorado universitário e aumentam o controle de universidades como a de Paris. Jacques Le Goff, em seu livro chave Os intelectuais na Idade Média, considera que os intelectuais do Ocidente praticamente perderam sua independência e “se converteram” em agentes pontifícios.
            Nas universidades, a filosofia e as “artes” ou habilidades que cultiva se situam como um saber preparatório para as três grandes ciências (e faculdades universitárias) da época: em primeiro lugar a teologia e, sem estar secularizadas, a medicina e o Direito. Com isso culmina uma longa tradição cristã, pois já Alcuino de York aconselha a Carlos Magno que: “Os soldados da Igreja devem ser não apenas devotos intimamente, mas doutos também exteriormente: homens de costumes puros e mestres de claros discursos”.[xi] E, segundo Garin, mais tarde Thierry de Chartres considerará que “em essência, os estudos das artes se justificam e possuem um valor, se é que tem um, na medida em que permitem chegar a entender melhor o significado da Escritura”[xii].
            Significativamente, Gregório IX (1228) proclamou a preponderância da faculdade de teologia, considerando que
            A inteligência teológica (...) deve exercer seu poder sobre cada faculdade, tal como o espírito a exerce sobre a carne, e dirigi-la no caminho reto para que não se perda (...) segundo as tradições experimentadas pelos santos.
            De maneira já totalmente explícita e inequívoca, a teologia e, portanto, a fé são consagradas como a guia suprema do saber e da razão, ocupando o vértice superior dos estudos escolásticos.
            Ademais, as diversas “escolas” filosóficas e teológicas foram se fixando tanto institucionalmente quanto doutrinalmente, o que se reflete, por exemplo, no fato de que em cada ordem passou a impor-se um determinado “mestre” por cima dos demais. Por isso Ch. H. Haskins considera que enquanto “em 1100 a escola segue o mestre, a partir de 1200, é o mestre que segue a sua escola”[xiii]. Ora, isso respondia a profundas tendências na estrutura mesma da escolástica, pois
            A uma forma de ensinar rigorosamente ordenada, regida por regras precisas, se opõem escolas diferentes, concorrentes entre si, rivais, diversamente especializadas, nas quais a discussão pública e a polêmica são centrais, e onde, portanto, a ‘dialética’ assumirá uma função preponderante.[xiv]
            É muito significativa a condenação do Bispo de Paris em 1277 do Averroísmo latino, pois significa que o mundo medieval já não é exclusivamente cristão. Outros elementos penetraram e o poder político e religioso tomou consciência de sua importância e potencial perigo. Com isso terminava a relativamente pacífica relação anterior entre fé e razão, entre teologia e filosofia, que se baseava na incontestável (porém bastante flexível) preponderância das primeiras. Agora, precisamente porque razão e filosofia passam a reclamar uma mínima autonomia, o poder eclesial se torna mais zeloso e explícito sobre as universidades e as diversas doutrinas.



[i] John Robert McNeill e William H. McNeill, Las redes humanas: una historia global del mundo, trad. Jordi Beltrán, Barcelona, Crítica, 2004, p. 209.
[ii] Ibidem, p. 210, nota.
[iii] Eugenio Garin, La educacion en Europa 1400–1600: problemas y programas, Barcelona, Crítica, 1987, p. 50, nota.
[iv] John Merson, Roads to Xanadu: East and West in the Making of the Modern World, London, Weidenfeld & Nicolson, 1989, p. 82ss apud Peter Jay, La riqueza del hombre: una historia economica de la humanidad, Madrid, Critica, 2002, p. 103.
[v] NdT: por ‘grêmios’, entenda-se as ‘corporações de ofício’.
[vi] Peter Watson, Ideas: historia intelectual de la humanidad, trad. Luis Noriega, Barcelona, Crítica, 2006, p. 583ss.
[vii] Começa em 1088, sob iniciativa de estudantes, e lidera o estudo do Direito, iniciando pelo Direito Civil e a recompilação justiniana do Direito Romano. Em 1140 se introduz o Direito Canônico.
[viii] Ao final do século XII já funcionava um grêmio de mestres que, em conflito com o chanceler da catedral, se instala na hoje famosa margem esquerda do Sena. Em 1213 obtêm o apoio de Inocêncio III, que a vincula diretamente ao Papado.
[ix] Peter Burke, Historia social del conocimiento: de Gutenberg a Diderot, trad. Isidoro Arias, Barcelona, Paidós, 2002, p. 53.
[x] Watson, Ideas, p. 592.
[xi] Citado por Garin, La educación en Europa 1400–1600, p. 38.
[xii] Ibidem, p. 44.
[xiii] Charles Homer Haskins, El renacimiento del siglo XII, Barcelona, Atico de los libros, 2013.
[xiv] Garin, La educación en Europa 1400–1600, p. 51.


Do artigo “INFLUÊNCIAS MEDIEVAIS E INOVAÇÕES MODERNAS. UMA ANÁLISE MACROFILOSÓFICA” de Gonçal Mayos (traído por Karine Salgado) em ENTRE O MEDIEVAL E O MODERNO: REPRESENTAÇÕES E RUPTURAS, FILOSOFIA, CULTURA E DIREITO de KARINE SALGADO E ARNO DAL RI JÚNIOR (Organizadores), EDITORA UFMG, BELO HORIZONTE, 2019.


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