Ainda que seja palpável que a
Revolução científica e a filosofia moderna se originaram em grande medida fora
das universidades, estas representaram um importante e dinâmico fator
diferencial no que diz respeito a outras tradições. Ademais, tal impulso se
transmitiu a outros âmbitos, quando as universidades escolásticas se tornaram
ultrapassadas a partir do século XV. Pois a universidade medieval tinha
uma
existência jurídica de corporação que a distinguia como comunidade na qual os
estudiosos costumavam gozar de liberdade para debater ao seu alvedrio [e que]
as autoridades religiosas e políticas toleravam somente porque não podiam
esmagá-la em uma Europa fragmentada. A sobrevivência das universidades
proporcionou aos cientistas europeus uma comunidade que os apoiava e não
encontrava paralelo em nenhuma outra parte do mundo. A Europa já dispunha de
mais de 100 universidades em 1500.[i]
Isso marcou uma notável diferença
com outras culturas, como estuda Toby E. Huff (The rise of Early Modern Science. Islam, China and the West, 1993), pois
Durante
dois séculos (1450 – 1650) aproximadamente 87 entre 100 cientistas europeus
incluídos no Dictionary os Scientific
Biography tinham estudos universitários e a metade deles trabalhava para
universidades.[ii]
Apesar de isso hoje surpreender a
alguns, as universidades e a escolástica tardomedieval representam uma
importante modernização institucional do saber e da concepção da vida
intelectual, ainda que em chave antimundana. O prestigioso medievalista André
De Libera destacou que as primeiras comunidades universitárias tinham um ideal
e uma prática muito afastados dos hábitos meramente mundanos; porém, que sua
origem em núcleos citadinos é claramente oposta às escolas monacais.
Enquanto que estas buscavam o
isolamento social, se radicavam no campo e eram muito mais facilmente
controladas pelo abade ou pelo senhor mais próximo, nas universidades, ao
contrário, existe a vontade de alcançar uma massa crítica que lhes permita
distanciar-se do estrito controle político e doutrinal. Na evolução de umas e
outras se consolidou a escolástica e distintos tipos de intelectuais. Pois
Anselmo
e Abelardo podem ser proclamados criadores do método escolástico; porém entre
Anselmo e Abelardo há muita distância: Anselmo foi a luz na Abadia de Bec na
Normandia; Abelardo foi o mestre atraente e apaixonado da escola de Paris.[iii]
Embora as universidades cristãs
pareçam seguir o modelo da “madrasta” islâmica (de procedência sunní),[iv]
por sua etimologia, o termo “universidade” remete a “todo”, “comunidade”,
“agrupamento” e “reunião” tanto de mestres e alunos, como das antigas escolas
monacais, catedralícias e palatinas (Universitas
Scholarum) quando são absorvidas pela nova realidade da cidade e por um
novo estilo de intelectuais mais ativos. Comenta-se que a organização
universitária medieval coincide em grande medida com a dos grêmios[v]
(que etimologicamente significa: regaço, cavidade protetora, seio) e que,
portanto, seria a comunidade protetora do grêmio intelectual e do ensino.
Como disse E. Mitre Fernández (Las claves de la Iglesia en la Edad Media,
1991 e Historia de la Edad Media en
Occidente, 1995), em seu início, a universidade foi resultado também do
impacto do movimento corporativo geral que, ao final do feudalismo, defendia os
interesses de novos setores sociais. Pois as universidades apareceram como
associações de professores (Paris) e alunos (Bolonha) que queriam tornar-se
independentes dos âmbitos cerrados das escolas monacais e episcopais, nas quais
os bispos impunham seus critérios. Conseguiram a isenção das jurisdições locais
(mediante bula papal) e seus títulos eram válidos em toda Europa – facilitando
uma enorme circulação de mestres e estudantes.
Com antecedentes na Escola de
Direito de Beirut que floresceu entre os séculos III e IV, e a Universidade
imperial de Constantinopla fundada em 425, quiçá a primeira universidade é a de
Salerno, que se iniciou como centro de tradução e, a partir de 1077 – com
Constantino o Africano –, se especializa em medicina.[vi]
Porém foram Bolonha[vii]
e Paris[viii]
os modelos para o resto das universidades.[ix]
Destacamos: Vicenza (1204), Arezzo (1215) e Pádua (1229) que são sucessivas
fissões de Bolonha; Oxford (1167, famosa em matemáticas e ciências naturais com
Grosseteste e Roger Bacon) e Cambridge (1209, fundada por dissidentes de
Oxford). As seguem Salamanca, Nápoles, Toulouse, Valencia, Praga, Cracovia,
Viena, Heidelberg e muitas outras. Watson calcula que “Entre começos do século
XIV e 1500 as universidades europeias passaram de aproximadamente quinze ou
vinte a acerca de setenta”.[x]
Ora, suas iniciais autonomia
liberdade organizativa e autonomia doutrinal se viram rapidamente ameaçadas e
as universidades tiveram que manter uma luta constante com os poderes públicos
e as igrejas locais. Aproveitando a extinção da dinastia imperial Hohenstaufen
(1268), Bonifácio VIII vê a oportunidade de impor-se ao Imperador através da
bula Unam Sanctam, que proclama a
supremacia universal do Papa. Dentro de uma mesma estratégia de reforçar a
unidade e o controle papal da Cristandade, Inocêncio III cria a Inquisição,
confirma as novas ordens mendicantes que, havendo se adaptado à vida urbana, se
convertem na principal fonte do professorado universitário e aumentam o
controle de universidades como a de Paris. Jacques Le Goff, em seu livro chave Os intelectuais na Idade Média,
considera que os intelectuais do Ocidente praticamente perderam sua
independência e “se converteram” em agentes pontifícios.
Nas universidades, a filosofia e as
“artes” ou habilidades que cultiva se situam como um saber preparatório para as
três grandes ciências (e faculdades universitárias) da época: em primeiro lugar
a teologia e, sem estar secularizadas, a medicina e o Direito. Com isso culmina
uma longa tradição cristã, pois já Alcuino de York aconselha a Carlos Magno
que: “Os soldados da Igreja devem ser não apenas devotos intimamente, mas
doutos também exteriormente: homens de costumes puros e mestres de claros
discursos”.[xi]
E, segundo Garin, mais tarde Thierry de Chartres considerará que “em essência,
os estudos das artes se justificam e possuem um valor, se é que tem um, na medida
em que permitem chegar a entender melhor o significado da Escritura”[xii].
Significativamente, Gregório IX
(1228) proclamou a preponderância da faculdade de teologia, considerando que
A
inteligência teológica (...) deve exercer seu poder sobre cada faculdade, tal
como o espírito a exerce sobre a carne, e dirigi-la no caminho reto para que
não se perda (...) segundo as tradições experimentadas pelos santos.
De maneira já totalmente explícita e
inequívoca, a teologia e, portanto, a fé são consagradas como a guia suprema do
saber e da razão, ocupando o vértice superior dos estudos escolásticos.
Ademais, as diversas “escolas”
filosóficas e teológicas foram se fixando tanto institucionalmente quanto
doutrinalmente, o que se reflete, por exemplo, no fato de que em cada ordem
passou a impor-se um determinado “mestre” por cima dos demais. Por isso Ch. H.
Haskins considera que enquanto “em 1100 a escola segue o mestre, a partir de
1200, é o mestre que segue a sua escola”[xiii].
Ora, isso respondia a profundas tendências na estrutura mesma da escolástica,
pois
A
uma forma de ensinar rigorosamente ordenada, regida por regras precisas, se
opõem escolas diferentes, concorrentes entre si, rivais, diversamente
especializadas, nas quais a discussão pública e a polêmica são centrais, e
onde, portanto, a ‘dialética’ assumirá uma função preponderante.[xiv]
É muito significativa a condenação
do Bispo de Paris em 1277 do Averroísmo latino, pois significa que o mundo
medieval já não é exclusivamente cristão. Outros elementos penetraram e o poder
político e religioso tomou consciência de sua importância e potencial perigo.
Com isso terminava a relativamente pacífica relação anterior entre fé e razão,
entre teologia e filosofia, que se baseava na incontestável (porém bastante flexível)
preponderância das primeiras. Agora, precisamente porque razão e filosofia
passam a reclamar uma mínima autonomia, o poder eclesial se torna mais zeloso e
explícito sobre as universidades e as diversas doutrinas.
[i] John Robert
McNeill e William H. McNeill, Las redes
humanas: una historia global del mundo, trad. Jordi Beltrán, Barcelona,
Crítica, 2004, p. 209.
[ii] Ibidem, p. 210, nota.
[iii] Eugenio Garin, La educacion en Europa
1400–1600: problemas y programas, Barcelona, Crítica, 1987, p. 50,
nota.
[iv] John Merson, Roads
to Xanadu: East and West in the Making of the Modern World, London,
Weidenfeld & Nicolson, 1989, p. 82ss apud
Peter Jay, La riqueza del hombre:
una historia economica de la humanidad, Madrid, Critica, 2002, p. 103.
[v] NdT: por
‘grêmios’, entenda-se as ‘corporações de ofício’.
[vi] Peter Watson, Ideas:
historia intelectual de la humanidad, trad. Luis Noriega,
Barcelona, Crítica, 2006, p. 583ss.
[vii] Começa
em 1088, sob iniciativa de estudantes, e lidera o estudo do Direito, iniciando
pelo Direito Civil e a recompilação justiniana do Direito Romano. Em 1140 se
introduz o Direito Canônico.
[viii] Ao final
do século XII já funcionava um grêmio de mestres que, em conflito com o
chanceler da catedral, se instala na hoje famosa margem esquerda do Sena. Em
1213 obtêm o apoio de Inocêncio III, que a vincula diretamente ao Papado.
[ix] Peter Burke, Historia social del conocimiento: de Gutenberg a
Diderot, trad. Isidoro Arias, Barcelona, Paidós, 2002, p. 53.
[x] Watson, Ideas, p. 592.
[xi] Citado por Garin, La educación en Europa 1400–1600, p. 38.
[xii] Ibidem, p. 44.
[xiii] Charles
Homer Haskins, El renacimiento del siglo
XII, Barcelona, Atico de los libros, 2013.
[xiv] Garin,
La educación en Europa 1400–1600, p. 51.
Do artigo “INFLUÊNCIAS
MEDIEVAIS E INOVAÇÕES MODERNAS. UMA ANÁLISE MACROFILOSÓFICA” de Gonçal
Mayos (traído por Karine Salgado) em ENTRE O MEDIEVAL E O MODERNO: REPRESENTAÇÕES E RUPTURAS, FILOSOFIA,
CULTURA E DIREITO de KARINE SALGADO E ARNO DAL RI JÚNIOR (Organizadores),
EDITORA UFMG, BELO HORIZONTE, 2019.
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