Gonçal Mayos PUBLICATIONS

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May 25, 2019

PASSAR DO MUNDO MEDIEVAL AO MODERNO


Para começar traçaremos um modelo macrofilosófico mínimo que permita orientarmo-nos um pouco no complexíssimo processo que permite passar do mundo medieval ao moderno. Se trata de apontar a preparação medieval das condições históricas e sociais que tornaram possível o chamado “avanço europeu” e o que se convencionou chamar “o sistema dos 500 anos” (Chomsky). Com ele se intentará mostrar que algumas inovações e influências medievais foram chaves para que fosse possível a modernidade.
            O “avanço” europeu se constrói sobre os seguintes pilares básicos:
- Uma nova filosofia e uma nova cultura, que seguem sendo cristãs e influenciadas pela filosofia e pela cultura medievais, porém que estão cada vez menos submetidas ao controle eclesiástico e mais aliadas à nova ciência físico-matemática.           
- Uma tecnologia militar, especialmente naval e voltada à artilharia, mas também civil, que provém planejamentos pragmático-artesanais e que progressivamente também se aproxima da ciência físico-matemática.          
- Um crescentemente poderoso capitalismo comercial e financeiro, nascido nas “comunas” campesinas e nos “burgos” medievais.
- Os nascentes Estados-nação, que, consolidados em torno às casas reais feudais, serão os vencedores dos conflitos políticos medievais e modernos.
            O modelo mais básico destaca como ponto de ruptura mais importante o lento crescimento do capitalismo nas crescentes cidades medievais. Ali aparecem inovadoras estruturas comerciais, os grêmios artesanais e empresas financeiras que lideraram as cidades e, pouco a pouco, se estenderam por todas as partes. Ainda que com grandes resistências, esse capitalismo influenciará nas instituições políticas estamentais, já que os senhores feudais – incluindo imperadores, futuras casas reais e a Igreja – recorrerem a ele para sufragar o conflito e a corrida armamentista que estabelecem entre si. Assim, certas casas burguesas conseguirão uma influência política que, por princípio, lhes era negada.
            Nos conflitos tardomedievais pela hegemonia política entre Papado, Império, a aristocracia feudal e as novas monarquias, estas sairão vencedoras. Eliminarão toda tutela política do Império e da Igreja, subordinarão e fidelizarão a aristocracia, incorporando-a às instituições “nacionais” que criam (como o exército e a administração). Para conseguir tal vitória, as monarquias proto-nacionais se aproximam do poder econômico da burguesia comercial e financeira, porém mantendo-a relativamente distante do poder político-militar, sobretudo nas etapas chamadas “absolutistas”.
            Em todo caso as novas monarquias proto-nacionais promovem o capitalismo e a burguesia cada vez mais decididamente, ao: outorgar privilégios e “liberdades” às cidades (que por isso não raro se denominam “livres”, “francas” ou “reais”); vender cargos administrativos e monopólios econômicos; criar uma “nobreza togada”[i] vinculada ao serviço direto da monarquia; desmontar o feudalismo econômico e toda a complexidade jurídica dos chamados “maus usos”;[ii] seguir políticas mercantilistas e coloniais; criar um “mercado nacional” unificado; lenta imposição fiscal à nobreza e ao clero (até então isentos)...
            Durante esse longo e complexo processo emerge e se desenvolve uma nova elite culta e alfabetizada, cada vez mais vinculada aos novos Estados-nação, e que já não é somente de extração clerical, mas cada vez mais aristocrática e burguesa. Aparecem assim grupos intelectuais à parte dos votos eclesiásticos e, mesmo, das universidades. Mas bem estão vinculados às cidades (ajuntamentos...) ou às monarquias (conselhos, ministros...): humanismo civil, nobreza togada, cargos burocráticos, academias reais...
            É evidente que tais elites são indiscutivelmente cristãs, porém deixam de ter mentalidade sacerdotal, substituindo-a por outras mais mundanas, pragmáticas, laicas e secularizadas. Em um primeiro momento predomina o humanismo de raízes clássicas (com grande valorização da retórica e da dialética greco-latinas, quatrivium), porém gradualmente predomina uma cultura e uma filosofia aliadas a uma nova ciência físico-matemática (nascida do trivium) e, até mesmo, às aplicações tecnológicas mecânicas. Estas últimas haviam sido tradicionalmente menosprezadas por sua vinculação ao trabalho manual, porém agora serão revalorizadas, vinculadas à teoria físico-matemática e aceitas como dignas das elites rurais (facilitando a revolução industrial de finais do século XVIII).
            Podemos seguir essa evolução nos saberes e nos intelectuais que os desenvolveram, seja em uma perspectiva mais vinculada ao quatrivium humanístico (desde Dante, Ficino ou Rabelais até Maquiavel, Jean Bodin ou Grotius), seja em uma perspectiva mais empírica e pragmática (Arnau de Vilanova, Vesalio, Paracelso, Francis Bacon, Brahe, Boyle...), seja ainda em uma perspectiva mais vinculada ao trivium e às matemáticas (desde Copérnico, Kepler, Galilei, Descartes, Boyle ou Hobbes até Leibniz e Newton). Atesta a progressiva integração desses saberes a evolução de instituições como a Accademia Nazionale dei Lincei, la Royal Society, la Royal Académie de Sciences ou a Enciclopedia francesa.



[i] NdT: A “nobreza togada” constitui-se na nobreza dos palácios, cortesã, paralela à tradicional nobreza de espada.
[ii] NdT: “Maus usos senhoriais”, locução utilizada na Idade Média e no Antigo Regime para designar prestações e obrigações (exações de todos os tipos) dos servos ante os senhores feudais.


Do artigo “INFLUÊNCIAS MEDIEVAIS E INOVAÇÕES MODERNAS. UMA ANÁLISE MACROFILOSÓFICA” de Gonçal Mayos (traído por Karine Salgado) em ENTRE O MEDIEVAL E O MODERNO: REPRESENTAÇÕES E RUPTURAS, FILOSOFIA, CULTURA E DIREITO de KARINE SALGADO E ARNO DAL RI JÚNIOR (Organizadores), EDITORA UFMG, BELO HORIZONTE, 2019.


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