O esboço do modelo mínimo de
evolução acerca das (apesar de a Idade Média se construir sobre a destruição do
mundo) instituições e culturas medievais só foi possível graças à evolução e as
influências tardomedievais. Sem elas não seria possível entender o passo do
pensamento mitopoiético antigo (que, no entanto, persiste no mundo rural e na
maior parte da população medieval) ao mundo moderno dominado pela ciência e
pela técnica.
A propósito a intuição de Auguste
Comte continua sendo muito útil. O autor pensa que o monoteísmo religioso foi a
chave para unificar a explicação do mundo em uma única e trabalhada cosmovisão
que deixa para trás tanto o politeísmo quanto os mitos antropomórficos e
zoomórficos. Somente a partir de tal aporte do monoteísmo – diz Comte – a
humanidade poderá evoluir até uma cosmovisão unitária mais rigorosa e
estruturada racionalmente: em primeiro lugar de tipo filosófico-metafísico.
Como destaca Max Weber (no início de A
ética protestante e o espírito do capitalismo): “o desenvolvimento pleno de
uma teologia sistemática é próprio do Cristianismo influenciado pelo
helenismo”. [i]
Pois bem: em tal evolução resulta de
todo essencial a importância da tradição teológica e escolástico-universitária
medieval. A complexíssima e mutável relação medieval entre razão e fé é chave
para a progressiva sistematização dos saberes e para a secularização das
cosmovisões. Podemos perseguir o impacto do monoteísmo teológico nos
posteriores sistemas racionalistas baseados em um único fundamento ou princípio
de tipo metafísico. Nesta linha, Ernest Gellner aponta que a grande
estruturação escolástica medieval unificou a totalidade dos saberes humanos,
com potência abstrata e grande coerência silogística:
A
alfabetização; a unificação escolástica em um sistema; o monoteísmo exclusivo e
zeloso; o brilhante modelo que preserva a verdade mediante inferências
rigorosas na geometria, na lógica e talvez no Direito; a centralização da
classe intelectual; uma estrita delimitação da revelação e uma limitação de sua
fonte, excluindo um incremento fácil, uma monopolização e burocratização da
magia por parte do grêmio clerical: tudo isto conjuntamente originou de algum
modo um sistema unificado, dirigido centralmente, com um vértice único.
A criação de uma complexa e muito
bem estruturada cosmovisão com um núcleo metafísico e teológico talvez seja o
grande aporte escolástico. Rodney Stark (em seus
livros The Victory of Reason. How
Christianity Led to Freedom, Capitalism and Western Success, 2005, e The Rise of Christianity, 1996)
argumenta que a razão, e a mentalidade e a preponderância europeia é em grande
medida resultado do influxo cristão. Em primeiro lugar, o cristianismo é uma
religião claramente antimistérica e antimágica, que põe a razão como dom
supremo de Deus. De acordo com o anterior, as grandes construções escolásticas
do saber teriam sido modelos de razão forte, estruturada e coerente que – mais
tarde e crescentemente secularizada – permitirá os grandes sistemas metafísicos
racionalistas (desde Descartes a Leibniz, passando por Hobbes e Spinoza).
Certamente, a construção de um marco
argumentativo racional e coerente (que inclusive superara o aristotélico) e a
profissionalização da educação (apontando já a tarefas de rigor produtivista)
pode ser a grande contribuição da escolástica. É o caso por exemplo de suas
contribuições ordenando e classificando os textos clássicos, introduzindo as
convenções para seu correto tratamento, datação, estruturação...; e
desenvolvendo disciplinas auxiliares para essas questões.
A escolástica colabora decisivamente
na extensão da alfabetização europeia e o posterior humanismo civil continua
nessa linha. Recordemos que “cleriqus” chegou a identificar-se com “literatus”
(o que era capaz de ler em latim). E isso transformou profundamente a
sociedade:
Pela primeira vez desde a
Antiguidade, a Europa presenciou a existência de um mercado de idéias
desinteressado, para o qual o pré-requisito essencial era um sistema de
comunicação baseado em textos. O produto lógico da organização e classificação
escritas do conhecimento foi o sistema escolástico.[ii]
Portanto, é indiscutível que as
universidades e, notadamente, a escolástica que nelas nasceu representam um
importante (embora ainda menosprezado) processo de modernização e, mesmo, de
secularização. A herança da Escolástica sobre referidos processos resta
evidente, se os compararmos à Patrística e ao saber monacal. Pois de fato as
universidades escolásticas lograram a vital tarefa de depurar e integrar as
tradições e racionalidades grega (já conhecida à época), latina pagã, árabe e
judia, em uma muito potente tradição e racionalidade cristã.
[i] Max Weber, La etica protestante y el espiritu del capitalismo, trad. Luis
Legaz Lacambra, 11. ed., Barcelona, Peninsula, 1992, p. 11.
[ii] Brian
Stock, The Implications of Literacy:
Written Languages and Models of Interpretation in the Eleventh and Twelfth
Centuries, Princeton, 1983, p. 86. apud
Jack Goody, La logica de la escritura y
la organizacion de la sociedad, trad. Inmaculada
Alvarez Puente,
Madrid, Alianza Editorial, 1990, p. 213.
Do artigo “INFLUÊNCIAS
MEDIEVAIS E INOVAÇÕES MODERNAS. UMA ANÁLISE MACROFILOSÓFICA” de Gonçal
Mayos (traído por Karine Salgado) em ENTRE O MEDIEVAL E O MODERNO: REPRESENTAÇÕES E RUPTURAS, FILOSOFIA,
CULTURA E DIREITO de KARINE SALGADO E ARNO DAL RI JÚNIOR (Organizadores),
EDITORA UFMG, BELO HORIZONTE, 2019.
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