Até a modernidade, incluindo a Idade
Média, foi outorgado aos saberes técnicos (techne),
produtivos (poiesis) e mecânicos (mechanomai) um pobre valor de verdade,
formativo e educativo. Eles foram menosprezados face à ciência (episteme), à práxis (política) ou mesmo à contemplação filosófica. Porém, desde
o final da Idade Média, ainda que geralmente em setores alheios à alta cultura
universitária, vai crescendo uma difusa mentalidade mais pragmática e que vai
reivindicando também os saberes artesanais, manuais, técnicos, produtivos e
mecânicos. Seguramente a moderna Revolução Industrial não teria sido possível
sem a sólida e relativamente nova aliança entre a nova ciência
físico-matemática e os estudos técnicos e as engenharias. Porém, a partir do
século XIX tal aliança se tornou tão poderosa que lhe é aplicável o neologismo
atual “tecnociência”.
Ora bem, ao final da Idade Média e
até bem adiantado o século XVIII, os saberes técnicos não são reconhecidos
(muito pelo contrário) como relevantes para o ideal de vida boa. Tampouco são
valorizadas para a distinção social ou para a formação de um autêntico
cavalheiro, pois mais frequentemente são associadas a classes subalternas, de
artesãos, de ofícios e trabalhadores basicamente manuais. No entanto,
normalmente fora das universidades, das altas academias e voltadas para esses
grupos subalternos, começam a criar-se instituições com programas mais ou menos
informais dedicados aos saberes técnicos, pragmáticos, artesanais ou
engenharias. Tal tradição em crescente expansão irá superando lentamente a
subordinação e o relativo menosprezo com que é acolhida pela nova ciência
físico-matemática (em princípio muito teórica e relativamente pouco
experimental) e a filosofia vinculada a ela.
Há muitos exemplos relevantes de
como a tradição mais empírica, manual e experimental vai adquirindo cotas de
maior reconhecimento. É o caso por exemplo do humanista Joan Lluís Vives (1492
– 1540) que em 1531 reivindica prestar maior atenção a questões mecânicas e
técnicas, recordando ironicamente que aqueles que a elas se dedicaram não
elucubraram enteléquias metafísicas como muitos filósofos. O historiador Paolo
Rossi destaca também a defesa do trabalho técnico e mecânico de Georg Bauer em De re Metallica (1556) e Guidobaldo del
Monte em Mechanicorum libri (1557).[1]
De sua parte, o médico e alquimista
Paracelso (1493 – 1541) publica em 1536 seu Grande
livro da cirurgia, criticando a medicina tradicional (demasiado metafísica
e livresca) e defendendo a experimentação. Essa mesma tendência se percebe em
Andrea Vesalio e sua famosa obra – com magníficas gravuras explicativas – De humani corporis fabrica (1543).
Ainda naquela época, a medicina e a
anatomia eram muito teóricas e as dissecações eram executadas por subalternos,
enquanto o “médico” permanecia afastado do cadáver, sentado em sua cátedra e
lendo-comentando os textos de Galeno. Porém em Vesalio vermos já uma tendência
a uma nova perspectiva de saber, a um só tempo teórico e prático, que une
conceitualização racional e experimentação direta e manual. Assim, em seu
famoso Prefácio, denuncia a
dicotomia criada na profissão de
médico: por uma parte, um professor que permanece cuidadosamente afastado do
cadáver que vai dissecar e fala desde o alto de uma cátedra consultando um
livro, por outra parte, um dissecador que desconhece a teoria e que se rebaixa
à categoria de carniceiro.[2]
Também critica o desprezo do
trabalho manual “que faz que os médicos se limitem a prescrever fármacos,
sangrias ou dietas e deixem a intervenção direta” aos que “chamam cirurgiões e
apenas consideram como escravos”.[3]
Supera-se, pois, a dicotomia
medieval que relega a dissecação e as operações médicas aos “barbeiros”,
resultando que “não só os médicos percam o conhecimento das vísceras, mas que percam
também completamente a habilidade de dissecar”, enquanto que “repetem até o
aborrecimento coisas que não observaram empiricamente, mas que aprenderam de
memória nos livros”. Vesalio denuncia (Prefácio a De humani corporis fabrica e Carta a G. Oporino) que “nesta
confusão se apresentam aos estudantes menos coisas do que um carniceiro poderia
ensinar a um médico desde seu mostrador”.
Ainda que pareça um passo limitado e
um campo muito óbvio, não o é em absoluto e questiona uma larga tradição na
qual a prática e a experiência direta do objeto material está nas mãos de
iletrados que desconhecem a teoria, enquanto que os que a conhecem menosprezam
o corpo, a anatomia empírica e o contato manual. Tão só por essa dicotomia
radical entre teoria e aplicação, entre diagnóstico e execução, entre
autoridade e exame direto, se aplica a perpetuação de erros de Galeno até pleno
século XVI e que Vesalio afirme que pode provar em uma só demonstração
anatômica que aquele “se equivoca mais de duzentas vezes na descrição correta
das partes, a harmonia, o uso e a função do corpo humano”.[4]
Essa profunda mudança em direção a
uma concepção do saber que revaloriza o empírico, pragmático, produtivo,
experimental e calculável se produz evidentemente sobre uma nova base social que
a promove e sustenta. Certamente e cada vez mais, os grandes promotores,
mecenas ou empregadores dos expertos artesanais, mecânicos e engenheiros não
são a Igreja nem as universidades religiosas, mas os nascentes Estados
(conselhos e ministros, cortes e burocracia, grandes nobres e militares etc.),
bem como o mundo burguês do comércio, os grêmios artesanais e a incipiente
indústria.
Como sucede sempre, o novo tipo de
saber serve a outras necessidades e – normalmente – é promovido por grupos
sociais específicos (alguns tão novos e emergentes quanto esse saber). Se a
sociedade muda, também o fazem os tipos de saber mais demandados por ela,
fazendo que mude o sentido e a finalidade do saber. Não é de se estranhar que
passem a segundo plano a contemplação, o cuidado da alma, a salvação eterna, o
tipo ocioso de “vida boa” e, também, a “distinção” social dada pelo saber
improdutivo; enquanto que se prioriza claramente a função utilitária,
produtiva, que atende ao valor de mercado, que vincula poder e saber, que
enriquece economicamente... Cada vez se enfatiza menos que o saber deve levar à
salvação, deve marcar o status social ou deve estar vinculado às contemplativas
e teóricas “artes liberais” tradicionais. Cada vez se enfatiza mais que o saber
deve ser produtivo, permitir o enriquecimento, deve ser eficaz dominando os
fenômenos naturais e deve abrir passo a novas profissões úteis e lucrativas.
Naturalmente, nem todas essas
alterações se produzem em um mesmo momento. Assim, a nobreza podia em muitos
casos rechaçar o trabalho e os saberes mais pragmáticos e, no entanto, exigir
cada vez mais a seus membros ou servidores diretos uma formação eficaz sobre a
arte da guerra, a diplomacia, o mando da gente, a fortificação, a administração
da fazenda, a organização pública e privada, o bom estilo de escrita e os bons
modos etc. De tal maneira que, inclusive nas classes mais conservadoras,
podemos dizer que o saber minimiza o ocioso, ascético, contemplativo e de
virtudes estamentais para maximizar uma certa percepção da utilidade, que serve
para fazer, para obter resultados e, em definitivo, para dominar as forças
naturais e potencializar as humanas.
Nessa esteira, nascerá a distinção
tardomoderna entre humanidades e ciências matemático-experimentais. Será um
processo muito lento, que só culminará em uma efetiva separação em fins do
século XIX. Todos os grandes heróis da Revolução Científica, de Copérnico a
Newton, passando por Kepler, Galileu, Bacon, Descartes e Leibniz, todos se
consideravam antes de mais nada e fundamentalmente filósofos. Incluso Newton,
que já se nega a fingir hipóteses metafísicas em sua física, se autodefinia
basicamente como um “filósofo da natureza” e tinha muitas preocupações
esotéricas, alquimistas e teológicas que não distinguia demasiado das “científicas”.
Descartes critica tanto humanistas
quanto escolásticos, porém lê Montaigne com muito gosto e se esforça para que
seu sistema, com fundamento metafísico (desenvolvido detalhadamente em suas Meditações metafísicas) seja aceito e
“abençoado” pela Sorbonne. Em sua utopia New
Atlantis, o chanceler inglês Francis Bacon imagina uma sociedade de sábios
vinculados ao governo político que será o modelo explícito da Royal Society de
Londres. Leibniz, seguindo intuições de Ramon Llull, estudará as condições de
um cálculo ou mathesis universalis e
de uma linguagem perfeita que estão nas bases da informática atual. E a Enciclopédia francesa de Diderot e
D’Alembert unirão – se pretende que harmoniosamente – a filosofia e os saberes
teóricos com os mais práticos, técnicos e inclusive os ofícios.
Isso ocorre inclusive no mui
matematizante Galileu, ainda que Bertrand Gille o vincule com a tradição
técnica e com engenheiros como Benedetti (1530 – 1590), ao qual denomina “o
mais próximo à ciência moderna, o predecessor de Galileu”[5].
Ainda que, indubitavelmente, não fosse o que mais valorizava em suas
investigações, é claro que Galileu não tem nenhum problema para fazer uso do
telescópio a partir de 1609. Ademais, o melhora rapidamente e de uma maneira
espetacular, com o que ganhou um concurso junto às autoridades venezianas, que
pensavam haver comprado um invento totalmente original, quando na realidade era
uma muito melhorada versão de um rudimentar aparato que servia – literalmente –
ao “entretenimento”.
Porém, em todo caso e como destaca
Paolo Rossi:
O que supõe uma revolução é a
confiança de Galileu em um instrumento nascido no mundo dos mecânicos, cujos
progressos se deviam somente à prática. (…) Ele o utiliza e o dirige ao céu com
espírito metódico e com mentalidade científica, o transforma em instrumento
científico. Para dar crédito ao que se vê com o telescópio é preciso crer que
esse instrumento serve não para deformar, mas para potencializar a visão. É
preciso contemplar os instrumentos como uma fonte de conhecimento, abandonar o
antigo e arraigado ponto de vista antropocêntrico, que considera a visão
natural do olho humano como um critério absoluto de conhecimento.[6]
Precisamente porque Aristóteles, e
com ele a grande tradição europeia, considerava a visão como o mais intelectual
dos sentidos e, portanto, tendia a identificá-la com a perspectiva do
intelecto, um instrumento destinado a melhorá-la parecia atentar contra a
própria inteligência. Isso aumentou as reticências em aceitar a veracidade das
observações telescópicas, como sintetiza Steven Shapin.[7]
Sem embargo, telescópio, microscópio e muitos outros instrumentos básicos de
observação e experimentação científica se sucederam rapidamente, configurando o
laboratório científico moderno.
Adiante, a mentalidade científica se
baseará em obrigar a natureza a confessar seus segredos e, com tal objetivo,
potencializar a inquisição humana em todo o possível. Já não se tratava de
esperar atentamente que a natureza se desvelasse (aletheia ou “verdade” grega, que etimologicamente significa
“desvelamento”). E ali onde não podia chegar a apreciação direta dos sentidos,
se tratava de construir instrumentos que pudessem detectar e quantificar os
fenômenos que se produzissem.
Pois bem, esta mentalidade, que de
maneira difusa e sem grandes pretensões era bastante antiga na tradição
artesanal, só triunfou plenamente e logrou o reconhecimento da alta cultura com
o desenvolvimento da modernidade. Sem embargo, foi significativa, pois permitiu
decisivas aplicações tecnológicas antes e – sobretudo – depois da Revolução
industrial. Pois os países que queriam liderar a história, no econômico, no
militar e inclusive no cultural, não podiam doravante prescindir delas.
Significativamente, as primeiras
potências coloniais, Portugal e Espanha, perderam rapidamente sua liderança
mundial (frente a outras como Holanda, França e sobretudo Grã-Bretanha)
precisamente por seus déficits nessa tradição tecnológica, científica e
produtiva. A modernidade demonstrou que ela é mais poderosa inclusive que o
enorme fluxo de ouro e prata americanos, pois sem essa base tecnocientífica e
produtiva terminava perdendo-se miseravelmente. É o que, como disse Carlo Cipolla[8]
observa que a
Espanha do século XVII, depois do boom
do Século de Ouro, tinha grande abundância de homens de letras e grande
escassez de artesãos. O país superabundava em poetas sem emprego, porém tinha
que importar a maior parte dos produtos manufaturados de que precisava.
Como vimos, temos que superar a
visão tradicional que menosprezava a importância da tradição produtiva e
artesanal que, frequentemente, se baseava em aplicações tecnológicas complexas
– ainda que sobre bases teóricas às vezes simples. Tal tradição se viu muito
potencializada quando se aliou com as grandes teorias matematizadas da ciência
e com o apoio dos Estados modernos e suas elites. Prontamente a eficácia
performativa e produtiva da tecnologia civil e militar foi percebida pelos monarcas
e por seus ministros, e superando os receios tradicionais tanto da aristocracia
quanto da Igreja, foi o grande patrocinador de grandes avanços (especialmente
nos setores militar e naval). Funcionaram como ponte, como diz Eisenstadt,
elites “secundárias” relativamente próximas do centro e muito eficazes, porém
influenciadas por inovadores rebeldes e heterodoxias religiosas e políticas[9].
Há, pois, que se proceder com muito
cuidado para não se cometer anacronismos e não se confundir os debates de
teólogos contra filósofos, mecânicos contra especulativos, metafísicos contra
antimetafísicos... que vão sucedendo-se desde finais da Idade Média até bem
adiantada a Idade moderna. Por exemplo, só a partir de finais do século XVIII,
com os inícios da Revolução Industrial e com a aparição de escolas
parapositivistas, começa a impor-se uma distinção clara entre humanidades (que
incluiria a filosofia) e as ciências (que incluiriam também os saberes
técnicos). Pensemos que significativamente a partir de 1781 Kant começa a
construir seu sistema crítico, no qual propõe estudar os distintos fundamentos
da ciência, da ética, da estética, da teologia natural... E temos que esperar
praticamente até o início do século XX, para que estejam perfeitamente
delimitadas a distinção entre humanidades, ciências sociais e tecnociências.
[1] Paolo
Rossi, El nacimiento de la ciencia
moderna en europa, trad. Maria Pons, Barcelona, Crítica, 1997, p. 26ss.
[2] Ibidem, p. 40.
[3] Ibidem, p. 56.
[4] Ibidem, p. 56.
[5] Gille, Les ingénieurs de la Renaissance, p.
214ss.
[6] Rossi, El nacimiento de la ciencia moderna en
europa, p. 27.
[7] Steven
Shapin, La revolución científica: una
interpretación alternativa, trad. Jose Romo Feito, Barcelona, Paidos Iberica,
2000, p. 99ss.
[8] Carlo Cippola, The economic decline of Empires, London,
Methuen, 1970, p. 127
[9] Shmuel Noah
Eisenstadt, Las grandes revoluciones y
las civilizaciones de la modernidade, Madrid, Centro de Estudios
Constitucionales, 2007, p. 100.
Do artigo “INFLUÊNCIAS
MEDIEVAIS E INOVAÇÕES MODERNAS. UMA ANÁLISE MACROFILOSÓFICA” de Gonçal
Mayos (traído por Karine Salgado) em ENTRE O MEDIEVAL E O MODERNO: REPRESENTAÇÕES E RUPTURAS, FILOSOFIA,
CULTURA E DIREITO de KARINE SALGADO E ARNO DAL RI JÚNIOR (Organizadores),
EDITORA UFMG, BELO HORIZONTE, 2019.
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