Também devemos considerar entre as
contribuições da escolástica (que às vezes são esquecidas) que – na segunda
metade do século XIV – o ensino das matemáticas penetra nas Universidades
(primeiro em Oxford e depois em Paris). Apesar da importância desse fato para o
desenvolvimento posterior da ciência e da técnica, não concordamos com Bertrand
Gille quando considera que essa “intrusão” da matemática no ensino escolástico
“representava claramente o triunfo da técnica”[i].
Pois na escolástica a matemática foi acolhida basicamente em sua vertente mais
teorética e pitagórica. Ora bem, a equiparação do trivium ao mesmo nível que o quatrivium
nos estudos universitários e na hierarquia dos saberes é uma clara contribuição
escolástica.
Também foi uma importante
contribuição escolástica e medieval a penetração na Europa e em todas as
classes dos numerais indo-arábicos, apesar de isso só ter-se culminado no
Renascimento. Assim, o livro sobre os novos números de Ibn al-Jwarismi (século
IX) chegou através da Península Ibérica, foi traduzido por Robert de Chester no
século XII e se fez de pronto muito famoso. Os números indo-arábicos
facilitaram muito o cálculo, que chegou a ser seis vezes mais rápido que com os
números romanos e o tabuleiro contador – e, sem esse, muito mais rápido ainda.
Ademais, permitiu “calcular com a
pena”, guardar constância fácil e clara das operações (coisa que não permite o
tabuleiro contador) e facilitando as recontagens e comprovações. Por isso,
segundo Crosby[ii],
já não se publicaram livros “de aritmética em números romanos” a partir de
1514. Parece, como disse Crosby, que de forma paralela a
renunciar
a uma língua supranacional, suprarregional, o latim, e adotar suas diversas
línguas vernáculas, os europeus ocidentais aceitaram e abraçaram outra
linguagem verdadeiramente universal: a algorítmica[iii],
quer dizer, a linguagem matemática
em caracteres indo-arábicos.
Naturalmente, o processo não foi
fácil nem automático, pois inclusive o grande Leonardo Fibonacci (século XIII),
apesar de usar números indo-arábicos, tinha, no entanto, “que expressar suas
relações e operações retoricamente, com palavras”, e (mesmo) os “conhecidos
signos de mais e menos, + e –”, somente apareceram impressos na Alemanha na
tardia data de 1489.[iv]
Ainda mais, para o uso da notação ‘=’ para designar uma igualdade, foi
necessário esperar pelo século XVI; mais tarde para incorporar o signo ‘x’ para
denotar a operação de multiplicar; e ainda mais tarde para o signo da operação
de dividir (que ainda hoje é discutido).
Whitehead valorou a grande
importância dessas melhoras dizendo:
essa
distensão de uma luta com os detalhes aritméticos deixou espaço para um avanço
que já havia tido uma débil antecipação nas matemáticas gregas mais recentes. A
álgebra faz agora sua aparição em cena, e a álgebra é a generalização da
aritmética[v].
Propriamente foi já uma aportação
moderna devida a Francis Vieta (finais do século XVI) e do filósofo
racionalista Descartes, que foi o primeiro a usar as variáveis algébricas:
(A,B,C...) para valores conhecidos e (X,Y,Z) para os desconhecidos.
Com isso, e precisamente nesse longo
processo que vai desde a escolástica medieval até a ciência físico-matemática e
a filosofia modernas, se conseguiu a profunda maravilha que: “À medida que a
álgebra foi tornando-se mais e mais abstrata e generalizada, se fez cada vez
mais clara”.[vi]
Insistimos, a atual e pós-industrial “sociedade do conhecimento” depende,
apesar de tudo, daqueles extraordinários avanços.
[i] Bertrand
Gille, Les ingénieurs de la Renaissance,
Paris, Hermann, 1964, p. 34.
[ii] Crosby, La medida de la realidad, p. 99.
[iii] Ibidem,
p. 101.
[iv] Ibidem, p. 101.
[v] NdT: Cf. Alfred North Whitehead, La ciencia
y el mundo moderno, trad. Marina Ruiz Lago, Buenos Aires, Losada, 1949, p.
46.
[vi] Crosby, La medida de la realidad, p. 104.
Do artigo “INFLUÊNCIAS
MEDIEVAIS E INOVAÇÕES MODERNAS. UMA ANÁLISE MACROFILOSÓFICA” de Gonçal
Mayos (traído por Karine Salgado) em ENTRE O MEDIEVAL E O MODERNO: REPRESENTAÇÕES E RUPTURAS, FILOSOFIA,
CULTURA E DIREITO de KARINE SALGADO E ARNO DAL RI JÚNIOR (Organizadores),
EDITORA UFMG, BELO HORIZONTE, 2019.
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