May 25, 2019

INTERIORIZAÇÂO, SUBJETIVAÇÂO E DESSACRALIZAÇÂO DA CULTURA


            Ao final da Idade Média se produz outro significativo fenômeno que, muitas vezes, não se valoriza suficientemente: a leitura, antes feita em voz alta, passa a ser silenciosa. Isso é signo de uma grande mudança na mentalidade e na relação individual com a cultura e com a ideologia.
            Recordemos que a primeira grande expansão do cristianismo veio vinculado a um amplo movimento de aculturação gerado a partir da circulação de uma série de textos bíblicos, neotestamentários ou epístolas como as de Paulo de Tarso entre pequenas comunidades dispersas. Estas estavam unidas pela leitura em voz alta e comentário comum desses escritos compartilhados. Junto com a predicação, esta foi o principal vetor de extensão do cristianismo.
            Pois bem, ao final da Idade Média, com a alfabetização de grande parte da população e dos livros que permitirá a imprensa de caracteres móveis de Gutenberg, se estende também a leitura silenciosa e na privacidade. Isso permite uma aproximação mais individual, livre e pessoal a ideias e modelos humanos, culturais e ideológicos que debilitam o poder ideológico exercido pela Igreja (a missa, as prédicas, a confissão, as escolas...) e até pelo poder público secular.
            A leitura silenciosa e na intimidade facilita, ademais, uma aproximação mais reflexiva e pausada; com uma implicação mais pessoal e menos automática; e que privilegia a convicção sentida subjetivamente ante os argumentos. Por isso é chave para configurar o ideal moderno de “liberdade de pensamento e de opinião”, pois facilita um desenvolvimento mais individualizado e subjetivo das próprias opiniões, e o desmascaro da pressão social e dos dogmas dominantes no entorno cultural. Pode parecer excessivo, porém os estudiosos vinculam a extensão e democratização da leitura silenciosa e íntima como uma ferramenta importantíssima para o desenvolvimento da individuação e da subjetivação típicas da modernidade européia.
            Michel Foucault acrescenta aos fatores mencionados outros que colaboram na individuação e na subjetivação. Destaca o cuidado de si, a confissão estimulada pela Igreja e a escuta privada do próprio eu, que inquire livre e secretamente por seus mais íntimos desejos, pulsões, instintos, paixões, anelos etc. Tudo isso faz com que a habitual pressão do ethos público e da sociedade seja mais facilmente posta “entre parêntesis” ou percebida como uma repressão exterior injusta, ante a qual se deve apresentar resistência pessoal ao menos na mente.
            É significativo que precisamente em 1412 em Oxford e em 1431 em Angers surgiram disposições que ordenavam que as bibliotecas fossem lugares silenciosos (até então nunca o haviam sido). Isso implicou que a leitura de livros dispensasse a emulação de figuras carismáticas como característica central da educação. (...) converteram a leitura em um ato privado e potencialmente herético [... e ademais] conduziram a um aumento da literatura erótica.[i]
            Em todo caso, se vai aprofundando o processo de desencantamento do mundo e dessacralização da sociedade que Weber considera consubstancial com a modernidade. Já no Renascimento, a religião e a teologia deixam de jogar o papel unificador de todo o cultural e o vital, e são substituídas por uma mentalidade e uma razão progressivamente secularizadas.



[i] Eric Wolf 2006:596 e também 613.


Do artigo “INFLUÊNCIAS MEDIEVAIS E INOVAÇÕES MODERNAS. UMA ANÁLISE MACROFILOSÓFICA” de Gonçal Mayos (traído por Karine Salgado) em ENTRE O MEDIEVAL E O MODERNO: REPRESENTAÇÕES E RUPTURAS, FILOSOFIA, CULTURA E DIREITO de KARINE SALGADO E ARNO DAL RI JÚNIOR (Organizadores), EDITORA UFMG, BELO HORIZONTE, 2019.


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