Ao final da Idade Média se produz
outro significativo fenômeno que, muitas vezes, não se valoriza
suficientemente: a leitura, antes feita em voz alta, passa a ser silenciosa.
Isso é signo de uma grande mudança na mentalidade e na relação individual com a
cultura e com a ideologia.
Recordemos que a primeira grande
expansão do cristianismo veio vinculado a um amplo movimento de aculturação
gerado a partir da circulação de uma série de textos bíblicos, neotestamentários
ou epístolas como as de Paulo de Tarso entre pequenas comunidades dispersas.
Estas estavam unidas pela leitura em voz alta e comentário comum desses
escritos compartilhados. Junto com a predicação, esta foi o principal vetor de
extensão do cristianismo.
Pois bem, ao final da Idade Média,
com a alfabetização de grande parte da população e dos livros que permitirá a
imprensa de caracteres móveis de Gutenberg, se estende também a leitura
silenciosa e na privacidade. Isso permite uma aproximação mais individual,
livre e pessoal a ideias e modelos humanos, culturais e ideológicos que
debilitam o poder ideológico exercido pela Igreja (a missa, as prédicas, a
confissão, as escolas...) e até pelo poder público secular.
A leitura silenciosa e na intimidade
facilita, ademais, uma aproximação mais reflexiva e pausada; com uma implicação
mais pessoal e menos automática; e que privilegia a convicção sentida
subjetivamente ante os argumentos. Por isso é chave para configurar o ideal
moderno de “liberdade de pensamento e de opinião”, pois facilita um
desenvolvimento mais individualizado e subjetivo das próprias opiniões, e o
desmascaro da pressão social e dos dogmas dominantes no entorno cultural. Pode
parecer excessivo, porém os estudiosos vinculam a extensão e democratização da
leitura silenciosa e íntima como uma ferramenta importantíssima para o
desenvolvimento da individuação e da subjetivação típicas da modernidade
européia.
Michel Foucault acrescenta aos
fatores mencionados outros que colaboram na individuação e na subjetivação.
Destaca o cuidado de si, a confissão estimulada pela Igreja e a escuta privada
do próprio eu, que inquire livre e secretamente por seus mais íntimos desejos,
pulsões, instintos, paixões, anelos etc. Tudo isso faz com que a habitual pressão
do ethos público e da sociedade seja
mais facilmente posta “entre parêntesis” ou percebida como uma repressão
exterior injusta, ante a qual se deve apresentar resistência pessoal ao menos
na mente.
É significativo que precisamente em 1412 em Oxford e em
1431 em Angers surgiram disposições que ordenavam que as bibliotecas fossem
lugares silenciosos (até então nunca o haviam sido). Isso implicou que a
leitura de livros dispensasse a emulação de figuras carismáticas como
característica central da educação. (...) converteram a leitura em um ato
privado e potencialmente herético [... e ademais] conduziram a um aumento da
literatura erótica.[i]
Em todo caso, se vai aprofundando o
processo de desencantamento do mundo e dessacralização da sociedade que Weber
considera consubstancial com a modernidade. Já no Renascimento, a religião e a
teologia deixam de jogar o papel unificador de todo o cultural e o vital, e são
substituídas por uma mentalidade e uma razão progressivamente secularizadas.
[i] Eric Wolf
2006:596 e também 613.
Do artigo “INFLUÊNCIAS
MEDIEVAIS E INOVAÇÕES MODERNAS. UMA ANÁLISE MACROFILOSÓFICA” de Gonçal
Mayos (traído por Karine Salgado) em ENTRE O MEDIEVAL E O MODERNO: REPRESENTAÇÕES E RUPTURAS, FILOSOFIA,
CULTURA E DIREITO de KARINE SALGADO E ARNO DAL RI JÚNIOR (Organizadores),
EDITORA UFMG, BELO HORIZONTE, 2019.
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