Como
vimos, embora as universidades medievais tenham nascido como estratégia para
ganhar liberdade e peso social que lhes desse mais autonomia, seu crescente
impacto incitou o Papado e a cada vez mais centralizada Igreja católica a
querer controlá-las. Esse conflito animou, por um lado, um profundo debate
filosófico; porém também implicou que as práticas efetivas da universidade
tendessem a fossilizar-se e que a “escolástica” adquirisse uma rigidez que antes
não havia tido.
Adiante, a filosofia universitária
será cada vez menos uma autêntica e livre forma de vida, passando a ser cada
vez mais um saber sistemático baseado em um cânone muito concreto e limitado de
textos e práticas intelectuais. Assim a lectio
será cada vez mais um estrito, “magisterial” e pouco participativo comentário
de umas muito concretas e estipuladas autoridades e livros.
Estudar
significa ler e glosar. O ensino, imaginado como um diálogo entre mestre e
discípulo, se concretiza em uma aclaração à margem ou entre linhas de um autor
ou de um texto. O processo do saber é um comentário, ou comentário de um
comentário. Como dizia Cassiodoro, liberalis
deriva de líber; legere textum significa decifrar códices, é entender o sentido, ou
melhor, os diferentes sentidos: litteralis,
historicus, allegoricus, spiritualis.
Excerpta, commenta, compilações e glossários: aqui está a produção
característica da escola medieval; e não se deve esquecer que a ‘escola’ é o
foco da cultura do Medievo.[i]
Também a quaestio que o mestre põe em discussão (disputatio) será conduzida a formas mais limitadas e controladas.
De eixo central da escolástica (recordemos os famosos enfrentamentos públicos
protagonizados por Pedro Abelardo), a disputatio
passa a ser cada vez mais reduzida e menos livre. Pois como expressará
magistralmente Eugenio Garin:
A
quaestio nasce de passagens
espinhosas e alimenta a disputatio.
Assim se fixa pouco a pouco uma técnica complexa e muito minuciosa que
imobiliza a lição, a define, a determina completamente. Os estatutos das
escolas que definem, matéria por matéria, os livros que devem ser usados impõem
a cada doutor ‘separar seu plano de leitura’ (...) Durante alguns séculos a produção
científica consta somente de ‘leituras’, ou seja, ‘comentários’, porque a
cultura é ‘escolástica’ e a pedagogia desta ‘escola’ se centra na leitura de
livros com autoridade e procura que seja explícito o significado de suas
palavras. O objeto do saber não é o homem nem o mundo, mas o que ‘está escrito’
em páginas sobre o homem e o mundo; a finalidade do saber não é uma formação
humana, uma libertação do homem, mas a aquisição de técnicas, admiráveis por
sua sutileza e refinamento para entender os textos, para resolver as dúvidas de
leitura, para resolver problemas que podem engendrar possíveis opiniões
enfrentadas[ii].
Em conjunto, tanto a instituição
universitária como suas práticas intelectuais passam a ser cada vez mais
controladas, ritualizadas e rígidas (se bem que não tanto como dirão os
humanistas renascentistas). Isso também afetará aspectos que fizeram famosa a
escolástica como: a preocupação, atenção e uso preciso da linguagem
(explicitando cuidadosamente a relação entre signo ou palavra com o conceito
abstrato-universal e com as coisas); a demonstração dialética; o recurso a um
cânone preestabelecido de autoridades (sejam elas cristãs ou pagãs), etc. Daqui
sairá um novo modelo de saber que mutatis
mutandis persistirá durante a modernidade e que ainda em nossos dias é
percebido por muitos como o modelo supremo ou básico do saber, ao menos nas
humanidades.
“Toda
a pedagogia medieval – se diz – está baseada na leitura de textos.” (...) Por
um lado existem os autores (auctores),
que possuem um valor que goza de uma espécie de reconhecimento jurídico; a
qualidade que tem os grandes autores é a auctoritas,
que comunicam a seus textos, àquelas páginas que levam o selo de sua dignidade,
que são “autênticas”. Os “autores”
são os que enunciam afirmações próprias, originais; frente a eles se situam os
“lectores”, os mestres, que expõem e
ilustram as “sentenças” dos autores.[iii]
Apesar do desvio que concentra a
atenção nos textos em prejuízo da realidade exterior e do mundo, resultado do
trabalho universitário e escolástico medieval é importantíssimo, ainda que não
suficientemente valorizado. Por exemplo, na transmissão, recompilação,
estabelecimento, fixação e organização material dos textos, de que ainda
dependemos.
Os
textos, sagrados e profanos, tal como foram recebidos pela primeira vez dos
antigos, eram massas diferenciadas, sem segmentações e sem apoios, (...) Os
escolásticos inventaram títulos de capítulos e fólios (...), remissões e
inclusive citações dos autores que se mencionavam. (...) idearam sistema de
capítulos e versículos para os livros da Bíblia.[iv]
Foram os escolásticos medievais que
desenvolveram a classificação alfabética
tão abstrata como uma progressão
de números (...) proporcionaram manuais e dicionários alfabetizados de
materiais para sermões (...) o sistema de índice analítico de matérias. Grécia
e Roma nunca haviam ordenado seus livros de maneira que um principiante pudesse
avançar com confiança desde o geral até o temático, o subtemático e o concreto,
para voltar logo ao geral. (...) Sua sistemática ajuda não somente a localizar
algo determinado em um livro, mas também a seguir linhas de argumentação e, tal
como a técnica matemática, a pensar com claridade.[v]
O nível de precisão,
sistematicidade, coerência, hierarquia argumentativa e filigrana formal com que
a escolástica medieval construiu a primeira versão do que podemos chamar de
“cânone cultural europeu” é equivalente à complexidade, riqueza e precisão com
que se constroem as grandes catedrais góticas. A escolástica converteu o saber escrito
e transmitido sistematicamente em uma complexa catedral onde tudo parece se
encaixar e colaborar para a beleza e a coerência do conjunto. Assim o viu
paradigmaticamente o estudioso da arte Erwin Panofsky em seu livro Arquitetura gótica e pensamento escolástico,
sendo as grandes “summas” teológicas e filosóficas o melhor exemplo disso.
Hoje pode haver a tentação de
minimizar o valor dessa humilde – porém tão imprescindível quanto útil –
organização do saber que desenvolveu a escolástica em suas distintas etapas.
Isso continuará aperfeiçoando-se através de movimentos hostis à escolástica,
como o humanismo, o jusnaturalismo, o enciclopedismo e muitos movimentos
intelectuais posteriores. Hoje resulta clara sua profunda diferença com a
mentalidade e sabedoria anterior, ainda que também fossem de enorme valor.
Muitas das hoje imprescindíveis
ferramentas e técnicas de argumentação, arquivo, datação, organização, fixação
etc., intelectual ou textual, provêm da escolástica. Pois nela, e quiçá pela
primeira vez na história, havia autênticos “profissionais” do saber, que se
relacionavam com ele com devoção quase religiosa, porém – ao mesmo tempo – com
vontade pragmática e produtiva. Recordemos que tanto na Grécia como em Roma a
sabedoria era um patrimônio reservado a gente acomodada, não raro
aristocrática, e cujo modo de vida dependia de uma forma ou outra da
escravidão. Eles buscavam a mais livre e direta contemplação do mundo, em
detrimento do árduo e detalhado trabalho intelectual, que identificavam com o trabalho
manual escravo. Ademais, as codificações do saber acumulado eram, então,
relativamente menores, com exceção talvez da mítica biblioteca de Alexandria.
Por outra parte, e como já
apontamos, a escolástica é resultado indireto de uma religião messiânica,
evangélica, baseada no proselitismo e que pretende doutrinar a massa completa
da população (algo que nunca havia pretendido antes nenhuma cultura, à exceção,
talvez, da judaica). E esse era exatamente o objetivo das ordens mendicantes e
pregadoras aparecidas precisamente no século XII nas cidades europeias e que
foram tão importantes para a escolástica. Aqui havia um grande interesse para
facilitar o trabalho de pregação e evangelização junto às classes baixas,
formando inclusive pregadores que delas procediam (e sem demasiada cultura).
Esse mesmo interesse se manifestará mais tarde na colonização e evangelização
americana, quando, subjacente às violências e destruições das culturas
indígenas, havia um claro interesse de transmitir de forma fácil e coerente
toda a cultura cristã a uma imensa população.
Como vimos, com a escolástica – e à
diferença do que se costuma pensar – rompe-se o fado elitista que parecia
acompanhar indefectivelmente as culturas e civilizações clássicas. Tanto quando
se baseavam na “ideologia heroica” e haviam sido elaboradas por guerreiros
ociosos, cultivados (em relação a seu povo) e aristocratas, quanto se eram
construções sacerdotais mais vinculadas a dogmas, secretos conhecimentos e a
uma transmissão por uma casta de escribas.
Com o tempo, a escolástica iniciou
um largo processo de alfabetização popular que (através da imprensa etc.)
provocou, ao fim e ao cabo, uma real democratização da cultura, sem a qual não
se entende a atual “sociedade do conhecimento”. Certamente se tratava, em
princípio, de uma aculturação religiosa e inclusive colonial da totalidade
“católica” da humanidade. Porém, precisamente durante a modernidade, se
secularizou e ampliou a muitos outros saberes científicos, técnicos,
humanísticos etc. Por um lado, permaneceu uma tendência e muitas práticas de um
saber muito erudito e baseado em um estrito cânone textual; porém, por outro
lado, teve grande impacto na aculturação popular.
Recordemos que, nem em Roma nem na
Grécia clássicas, e por suposto nem no Egito ou na Babilônia antigas, havia
demasiado interesse em aculturar ou doutrinar as massas populares. Eram
totalmente analfabetas, sua situação social era totalmente servil – quando não
escrava –, e seu impacto na vida política ou na alta cultura era praticamente
nulo. Por isso, salvando a complexa exceção judia, até o cristianismo não há
verdadeiro interesse por predicar e difundir ativamente novas ideias nos
extratos mais populares da comunidade.
Evidentemente, em cada sociedade e
em cada época, o objetivo do saber e da educação foi diferente, não se
dirigindo aos mesmos setores sociais e mudando notavelmente o ideal de saber.
Por isso há que se revalorizar corretamente a contribuição cristã, escolástica
e medieval para a democratização da cultura, a alfabetização e a educação.
Certamente a formulação mais completa e militante do ideal educativo universal
(o “sapere aude!” kantiano) será
feita pela moderna ilustração, porém apenas desenvolvendo e secularizando
aportes da Reforma protestante e da Contra-Reforma Católica, e anteriormente da
escolástica universitária e das ordens pregadoras medievais.
Certamente isso vinculou muito
estritamente cultura e educação com religião e cristianismo, e ademais o fato
formativo quedou já totalmente vinculado com instituições específicas
“escolares” (por exemplo, as regidas pela ordem Jesuíta ainda hoje). Como
lamentou o erudito francês Pierre Hadot, isso implicou que a filosofia e o
“amor ao saber” deixaram de ver-se como uma forma de vida e como uma maneira de
viver e de morrer. Um saber seguir a “vida boa” (que não é a boa vida) que
impregna tudo, desde os atos mais cotidianos, até os momentos mais críticos da
vida: por exemplo diante da morte.
Em pureza, para um grego clássico, a
filosofia é sobretudo um caminho ou forma de viver coletiva, com philia e em diálogo, mais que um simples
saber verdadeiro encerrado em si mesmo. Por isso Sócrates não tem nenhum
problema em relativizar os resultados conseguidos com o diálogo chamado Lisis (223b), precisamente dedicado à philia-amizade, dizendo: “nós
acreditávamos que éramos amigos – porque eu me conto entre vocês – e, sem
embargo, não fomos capazes de chegar a descobrir o que é um amigo”. É dizer:
não puderam definir rigorosamente a amizade, porém não importa muito porque
esse diálogo aprofundou a amizade que os une. Em contrapartida, Pierre Hadot
demonstrou que, sobretudo a partir da escolástica, a prática filosófica e
educativa em geral tende a institucionalizar-se. Passa a ser sobretudo uma
forma de pensar e um saber institucionalizado e disciplinar, mais que uma forma
de vida.
Também é certo que as universidades
escolásticas propunham um ideal teórico do saber e do cuidado da alma muito
mais apartado da vida mundana e cidadã. A paidéia
clássica nascia da necessidade de gerar o tipo de cidadão que é capaz de
intervir continuamente nos assuntos públicos. Por isso incluía sobretudo as
habilidades de falar, aconselhar, convencer e decidir prudentemente e em
público; pois era o tipo de saber de que necessitava a polis e que devia satisfazer a seus cidadãos (que, por outra parte,
não tinham que trabalhar nem ganhar seu sustento). De fato, o que na polis se entendia por “cuidado da alma”
e “vida boa” respondia basicamente às exigências da vida pública perfeitamente
integrada na polis (com que os unia um vínculo de philia) dos cidadãos que colaboram no governo da cidade e não são
um “idiota” (isto é, um mero particular ignorante e incapaz de participar na política).
Com o ideal ascético e antimundano
do cristianismo, tanto o “cuidado da alma” como a “vida boa” ou “beata” passam
a ser algo mais individual, retirado, íntimo, solitário, privado e vinculado ao
diálogo pessoal com Deus. O que inclui os votos de obediência, pobreza e
estrito cumprimento dos dogmas ou rituais que exige a Igreja católica. Por
isso, durante séculos, a educação foi sinônimo de educação religiosa adequada
para a salvação eterna; o “cuidado da alma” era dirigido ao comportamento interior,
enquanto que a “vida boa” se centrava no comportamento exterior.
Mesmo quando o debate entre fé e
razão, nas universidades, parece decantar-se em favor desta última, o saber e a
cultura não termina de desvincular-se e de acompanhar uma visão cristã da
humanidade (que por outra parte teve e tem uma larga vigência durante a
modernidade). Com a generalização da educação e a democratização da cultura ao
final da Idade Média, se vincularam muitas vezes com a “distinção” social (como
teorizou o sociólogo Pierre Bourdieu[vi]).
O ensino já não é pensado apenas para preparar os sacerdotes de que necessita a
Igreja, mas para formar as novas elites laicas, alfabetizando-as,
potencializando as habilidades ou virtudes que devem ter e, também, pondo em
manifesto o comportamento e o status
social que lhes corresponde.
Temos magníficos exemplos desses
modelos educativos que enlaçam os modelos cristãos com outros mais seculares
nos famosos “espelhos de príncipes ou de cortesãos” renascentistas e barrocos.
É o caso, por exemplo, do Livro do
cortesão (1528) de Baldassare Castiglione, O Discreto (1646) de Baltasar Gracián e também (ainda que às vezes
se esqueça) de uma obra injustamente denegrida: O Príncipe (1513) de Niccolò Machiavelli. Nesta obra – de cuja
redação celebramos o quinto centenário – se recorda sabiamente que “os bons conselhos, venham de onde venham, convém que nasçam da prudência
do príncipe e não, ao contrário, que a prudência do príncipe nasça dos bons conselhos”.
Também temos exemplos de novos
valores mais secularizados e antiestamentais da cultura e da “distinção
humana”. Assim aparece um certo valor meritocrático no ideal de “gentil cuore” de Dante e Petrarca, que
influenciará todas as gerações posteriores de humanistas e literatos (inclusive
antecipando a noção de “gênio”). Significativamente, o termo “gentil” tinha um
valor pejorativo no século XIII e nos contextos mais religiosos (por exemplo na
Summa Contra Gentiles de Tomás de
Aquino) pois é associado ao “pagão” ou ao “não cristão”. Em contrapartida, entre
os poetas trovadores do “amor courtois”,
no ciclo artúrico e na literatura cavalheiresca, “gentil” melhor se associa à
nobreza (gens, gentilicio...) e tem um sentido estético, de beleza. Assim, o
ideal de “gentil cuore” opõe, à
virtude pessoal e à nobreza meritocrática que nasce do coração e do espírito
nobres, a mera aristocracia de sangue. Dante e Petrarca estavam, pois,
reivindicando sua própria nobreza de coração e espírito, frente àquela baseada
tão só no sangue e na linhagem.
[i] Garin, La educación en Europa 1400–1600, p. 44.
[ii] Ibidem, p. 60ss.
[iii] Ibidem,
p. 58ss.
[iv] Alfred W. Crosby, La
medida de la realidad: la cuantificación y la sociedad occidental,
1250–1600, trad. Jordi Beltran, Barcelona, Crítica, 1998, p. 60.
Crosby recorda que “se produziram concordâncias para as Escrituras, índices de
palavras-chave e de temas para as obras dos Pais da Igreja e logo para as de
Aristóteles e outros autores antigos. Quando usavam números em sua andaimaria
cultural já substituíam as cifras romanas pelos novos e brilhantes algarismos
indoarábicos, mesmo antes da maioria dos mercadores e banqueiros”. Ibidem, p. 60.
[v] Ibidem, p. 61.
[vi] Cf. Pierre Bourdieu, La distinción: Criterio y bases sociales del gusto,
Mª del Carmen Ruiz de Elvira, Madrid, Taurus, 1991.
Do artigo “INFLUÊNCIAS
MEDIEVAIS E INOVAÇÕES MODERNAS. UMA ANÁLISE MACROFILOSÓFICA” de Gonçal
Mayos (traído por Karine Salgado) em ENTRE O MEDIEVAL E O MODERNO: REPRESENTAÇÕES E RUPTURAS, FILOSOFIA,
CULTURA E DIREITO de KARINE SALGADO E ARNO DAL RI JÚNIOR (Organizadores),
EDITORA UFMG, BELO HORIZONTE, 2019.
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