Gonçal Mayos PUBLICATIONS

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May 25, 2019

SABER ERUDITO-TEÓRICO E DA PREDICAÇÂO SOCIAL


Como vimos, embora as universidades medievais tenham nascido como estratégia para ganhar liberdade e peso social que lhes desse mais autonomia, seu crescente impacto incitou o Papado e a cada vez mais centralizada Igreja católica a querer controlá-las. Esse conflito animou, por um lado, um profundo debate filosófico; porém também implicou que as práticas efetivas da universidade tendessem a fossilizar-se e que a “escolástica” adquirisse uma rigidez que antes não havia tido.
            Adiante, a filosofia universitária será cada vez menos uma autêntica e livre forma de vida, passando a ser cada vez mais um saber sistemático baseado em um cânone muito concreto e limitado de textos e práticas intelectuais. Assim a lectio será cada vez mais um estrito, “magisterial” e pouco participativo comentário de umas muito concretas e estipuladas autoridades e livros.
            Estudar significa ler e glosar. O ensino, imaginado como um diálogo entre mestre e discípulo, se concretiza em uma aclaração à margem ou entre linhas de um autor ou de um texto. O processo do saber é um comentário, ou comentário de um comentário. Como dizia Cassiodoro, liberalis deriva de líber; legere textum significa decifrar códices, é entender o sentido, ou melhor, os diferentes sentidos: litteralis, historicus, allegoricus, spiritualis. Excerpta, commenta, compilações e glossários: aqui está a produção característica da escola medieval; e não se deve esquecer que a ‘escola’ é o foco da cultura do Medievo.[i]
            Também a quaestio que o mestre põe em discussão (disputatio) será conduzida a formas mais limitadas e controladas. De eixo central da escolástica (recordemos os famosos enfrentamentos públicos protagonizados por Pedro Abelardo), a disputatio passa a ser cada vez mais reduzida e menos livre. Pois como expressará magistralmente Eugenio Garin:
            A quaestio nasce de passagens espinhosas e alimenta a disputatio. Assim se fixa pouco a pouco uma técnica complexa e muito minuciosa que imobiliza a lição, a define, a determina completamente. Os estatutos das escolas que definem, matéria por matéria, os livros que devem ser usados impõem a cada doutor ‘separar seu plano de leitura’ (...) Durante alguns séculos a produção científica consta somente de ‘leituras’, ou seja, ‘comentários’, porque a cultura é ‘escolástica’ e a pedagogia desta ‘escola’ se centra na leitura de livros com autoridade e procura que seja explícito o significado de suas palavras. O objeto do saber não é o homem nem o mundo, mas o que ‘está escrito’ em páginas sobre o homem e o mundo; a finalidade do saber não é uma formação humana, uma libertação do homem, mas a aquisição de técnicas, admiráveis por sua sutileza e refinamento para entender os textos, para resolver as dúvidas de leitura, para resolver problemas que podem engendrar possíveis opiniões enfrentadas[ii].
            Em conjunto, tanto a instituição universitária como suas práticas intelectuais passam a ser cada vez mais controladas, ritualizadas e rígidas (se bem que não tanto como dirão os humanistas renascentistas). Isso também afetará aspectos que fizeram famosa a escolástica como: a preocupação, atenção e uso preciso da linguagem (explicitando cuidadosamente a relação entre signo ou palavra com o conceito abstrato-universal e com as coisas); a demonstração dialética; o recurso a um cânone preestabelecido de autoridades (sejam elas cristãs ou pagãs), etc. Daqui sairá um novo modelo de saber que mutatis mutandis persistirá durante a modernidade e que ainda em nossos dias é percebido por muitos como o modelo supremo ou básico do saber, ao menos nas humanidades.
            “Toda a pedagogia medieval – se diz – está baseada na leitura de textos.” (...) Por um lado existem os autores (auctores), que possuem um valor que goza de uma espécie de reconhecimento jurídico; a qualidade que tem os grandes autores é a auctoritas, que comunicam a seus textos, àquelas páginas que levam o selo de sua dignidade, que são “autênticas”. Os “autores” são os que enunciam afirmações próprias, originais; frente a eles se situam os “lectores”, os mestres, que expõem e ilustram as “sentenças” dos autores.[iii]
            Apesar do desvio que concentra a atenção nos textos em prejuízo da realidade exterior e do mundo, resultado do trabalho universitário e escolástico medieval é importantíssimo, ainda que não suficientemente valorizado. Por exemplo, na transmissão, recompilação, estabelecimento, fixação e organização material dos textos, de que ainda dependemos.
            Os textos, sagrados e profanos, tal como foram recebidos pela primeira vez dos antigos, eram massas diferenciadas, sem segmentações e sem apoios, (...) Os escolásticos inventaram títulos de capítulos e fólios (...), remissões e inclusive citações dos autores que se mencionavam. (...) idearam sistema de capítulos e versículos para os livros da Bíblia.[iv]
            Foram os escolásticos medievais que desenvolveram a classificação alfabética
            tão abstrata como uma progressão de números (...) proporcionaram manuais e dicionários alfabetizados de materiais para sermões (...) o sistema de índice analítico de matérias. Grécia e Roma nunca haviam ordenado seus livros de maneira que um principiante pudesse avançar com confiança desde o geral até o temático, o subtemático e o concreto, para voltar logo ao geral. (...) Sua sistemática ajuda não somente a localizar algo determinado em um livro, mas também a seguir linhas de argumentação e, tal como a técnica matemática, a pensar com claridade.[v]
            O nível de precisão, sistematicidade, coerência, hierarquia argumentativa e filigrana formal com que a escolástica medieval construiu a primeira versão do que podemos chamar de “cânone cultural europeu” é equivalente à complexidade, riqueza e precisão com que se constroem as grandes catedrais góticas. A escolástica converteu o saber escrito e transmitido sistematicamente em uma complexa catedral onde tudo parece se encaixar e colaborar para a beleza e a coerência do conjunto. Assim o viu paradigmaticamente o estudioso da arte Erwin Panofsky em seu livro Arquitetura gótica e pensamento escolástico, sendo as grandes “summas” teológicas e filosóficas o melhor exemplo disso.
            Hoje pode haver a tentação de minimizar o valor dessa humilde – porém tão imprescindível quanto útil – organização do saber que desenvolveu a escolástica em suas distintas etapas. Isso continuará aperfeiçoando-se através de movimentos hostis à escolástica, como o humanismo, o jusnaturalismo, o enciclopedismo e muitos movimentos intelectuais posteriores. Hoje resulta clara sua profunda diferença com a mentalidade e sabedoria anterior, ainda que também fossem de enorme valor.
            Muitas das hoje imprescindíveis ferramentas e técnicas de argumentação, arquivo, datação, organização, fixação etc., intelectual ou textual, provêm da escolástica. Pois nela, e quiçá pela primeira vez na história, havia autênticos “profissionais” do saber, que se relacionavam com ele com devoção quase religiosa, porém – ao mesmo tempo – com vontade pragmática e produtiva. Recordemos que tanto na Grécia como em Roma a sabedoria era um patrimônio reservado a gente acomodada, não raro aristocrática, e cujo modo de vida dependia de uma forma ou outra da escravidão. Eles buscavam a mais livre e direta contemplação do mundo, em detrimento do árduo e detalhado trabalho intelectual, que identificavam com o trabalho manual escravo. Ademais, as codificações do saber acumulado eram, então, relativamente menores, com exceção talvez da mítica biblioteca de Alexandria.
            Por outra parte, e como já apontamos, a escolástica é resultado indireto de uma religião messiânica, evangélica, baseada no proselitismo e que pretende doutrinar a massa completa da população (algo que nunca havia pretendido antes nenhuma cultura, à exceção, talvez, da judaica). E esse era exatamente o objetivo das ordens mendicantes e pregadoras aparecidas precisamente no século XII nas cidades europeias e que foram tão importantes para a escolástica. Aqui havia um grande interesse para facilitar o trabalho de pregação e evangelização junto às classes baixas, formando inclusive pregadores que delas procediam (e sem demasiada cultura). Esse mesmo interesse se manifestará mais tarde na colonização e evangelização americana, quando, subjacente às violências e destruições das culturas indígenas, havia um claro interesse de transmitir de forma fácil e coerente toda a cultura cristã a uma imensa população.
            Como vimos, com a escolástica – e à diferença do que se costuma pensar – rompe-se o fado elitista que parecia acompanhar indefectivelmente as culturas e civilizações clássicas. Tanto quando se baseavam na “ideologia heroica” e haviam sido elaboradas por guerreiros ociosos, cultivados (em relação a seu povo) e aristocratas, quanto se eram construções sacerdotais mais vinculadas a dogmas, secretos conhecimentos e a uma transmissão por uma casta de escribas.
            Com o tempo, a escolástica iniciou um largo processo de alfabetização popular que (através da imprensa etc.) provocou, ao fim e ao cabo, uma real democratização da cultura, sem a qual não se entende a atual “sociedade do conhecimento”. Certamente se tratava, em princípio, de uma aculturação religiosa e inclusive colonial da totalidade “católica” da humanidade. Porém, precisamente durante a modernidade, se secularizou e ampliou a muitos outros saberes científicos, técnicos, humanísticos etc. Por um lado, permaneceu uma tendência e muitas práticas de um saber muito erudito e baseado em um estrito cânone textual; porém, por outro lado, teve grande impacto na aculturação popular.
            Recordemos que, nem em Roma nem na Grécia clássicas, e por suposto nem no Egito ou na Babilônia antigas, havia demasiado interesse em aculturar ou doutrinar as massas populares. Eram totalmente analfabetas, sua situação social era totalmente servil – quando não escrava –, e seu impacto na vida política ou na alta cultura era praticamente nulo. Por isso, salvando a complexa exceção judia, até o cristianismo não há verdadeiro interesse por predicar e difundir ativamente novas ideias nos extratos mais populares da comunidade.
            Evidentemente, em cada sociedade e em cada época, o objetivo do saber e da educação foi diferente, não se dirigindo aos mesmos setores sociais e mudando notavelmente o ideal de saber. Por isso há que se revalorizar corretamente a contribuição cristã, escolástica e medieval para a democratização da cultura, a alfabetização e a educação. Certamente a formulação mais completa e militante do ideal educativo universal (o “sapere aude!” kantiano) será feita pela moderna ilustração, porém apenas desenvolvendo e secularizando aportes da Reforma protestante e da Contra-Reforma Católica, e anteriormente da escolástica universitária e das ordens pregadoras medievais.
            Certamente isso vinculou muito estritamente cultura e educação com religião e cristianismo, e ademais o fato formativo quedou já totalmente vinculado com instituições específicas “escolares” (por exemplo, as regidas pela ordem Jesuíta ainda hoje). Como lamentou o erudito francês Pierre Hadot, isso implicou que a filosofia e o “amor ao saber” deixaram de ver-se como uma forma de vida e como uma maneira de viver e de morrer. Um saber seguir a “vida boa” (que não é a boa vida) que impregna tudo, desde os atos mais cotidianos, até os momentos mais críticos da vida: por exemplo diante da morte.
            Em pureza, para um grego clássico, a filosofia é sobretudo um caminho ou forma de viver coletiva, com philia e em diálogo, mais que um simples saber verdadeiro encerrado em si mesmo. Por isso Sócrates não tem nenhum problema em relativizar os resultados conseguidos com o diálogo chamado Lisis (223b), precisamente dedicado à philia-amizade, dizendo: “nós acreditávamos que éramos amigos – porque eu me conto entre vocês – e, sem embargo, não fomos capazes de chegar a descobrir o que é um amigo”. É dizer: não puderam definir rigorosamente a amizade, porém não importa muito porque esse diálogo aprofundou a amizade que os une. Em contrapartida, Pierre Hadot demonstrou que, sobretudo a partir da escolástica, a prática filosófica e educativa em geral tende a institucionalizar-se. Passa a ser sobretudo uma forma de pensar e um saber institucionalizado e disciplinar, mais que uma forma de vida.
            Também é certo que as universidades escolásticas propunham um ideal teórico do saber e do cuidado da alma muito mais apartado da vida mundana e cidadã. A paidéia clássica nascia da necessidade de gerar o tipo de cidadão que é capaz de intervir continuamente nos assuntos públicos. Por isso incluía sobretudo as habilidades de falar, aconselhar, convencer e decidir prudentemente e em público; pois era o tipo de saber de que necessitava a polis e que devia satisfazer a seus cidadãos (que, por outra parte, não tinham que trabalhar nem ganhar seu sustento). De fato, o que na polis se entendia por “cuidado da alma” e “vida boa” respondia basicamente às exigências da vida pública perfeitamente integrada na polis (com que os unia um vínculo de philia) dos cidadãos que colaboram no governo da cidade e não são um “idiota” (isto é, um mero particular ignorante e incapaz de participar na política).
            Com o ideal ascético e antimundano do cristianismo, tanto o “cuidado da alma” como a “vida boa” ou “beata” passam a ser algo mais individual, retirado, íntimo, solitário, privado e vinculado ao diálogo pessoal com Deus. O que inclui os votos de obediência, pobreza e estrito cumprimento dos dogmas ou rituais que exige a Igreja católica. Por isso, durante séculos, a educação foi sinônimo de educação religiosa adequada para a salvação eterna; o “cuidado da alma” era dirigido ao comportamento interior, enquanto que a “vida boa” se centrava no comportamento exterior.
            Mesmo quando o debate entre fé e razão, nas universidades, parece decantar-se em favor desta última, o saber e a cultura não termina de desvincular-se e de acompanhar uma visão cristã da humanidade (que por outra parte teve e tem uma larga vigência durante a modernidade). Com a generalização da educação e a democratização da cultura ao final da Idade Média, se vincularam muitas vezes com a “distinção” social (como teorizou o sociólogo Pierre Bourdieu[vi]). O ensino já não é pensado apenas para preparar os sacerdotes de que necessita a Igreja, mas para formar as novas elites laicas, alfabetizando-as, potencializando as habilidades ou virtudes que devem ter e, também, pondo em manifesto o comportamento e o status social que lhes corresponde.
            Temos magníficos exemplos desses modelos educativos que enlaçam os modelos cristãos com outros mais seculares nos famosos “espelhos de príncipes ou de cortesãos” renascentistas e barrocos. É o caso, por exemplo, do Livro do cortesão (1528) de Baldassare Castiglione, O Discreto (1646) de Baltasar Gracián e também (ainda que às vezes se esqueça) de uma obra injustamente denegrida: O Príncipe (1513) de Niccolò Machiavelli. Nesta obra – de cuja redação celebramos o quinto centenário – se recorda sabiamente que “os bons conselhos, venham de onde venham, convém que nasçam da prudência do príncipe e não, ao contrário, que a prudência do príncipe nasça dos bons conselhos”.
            Também temos exemplos de novos valores mais secularizados e antiestamentais da cultura e da “distinção humana”. Assim aparece um certo valor meritocrático no ideal de “gentil cuore” de Dante e Petrarca, que influenciará todas as gerações posteriores de humanistas e literatos (inclusive antecipando a noção de “gênio”). Significativamente, o termo “gentil” tinha um valor pejorativo no século XIII e nos contextos mais religiosos (por exemplo na Summa Contra Gentiles de Tomás de Aquino) pois é associado ao “pagão” ou ao “não cristão”. Em contrapartida, entre os poetas trovadores do “amor courtois”, no ciclo artúrico e na literatura cavalheiresca, “gentil” melhor se associa à nobreza (gens, gentilicio...) e tem um sentido estético, de beleza. Assim, o ideal de “gentil cuore” opõe, à virtude pessoal e à nobreza meritocrática que nasce do coração e do espírito nobres, a mera aristocracia de sangue. Dante e Petrarca estavam, pois, reivindicando sua própria nobreza de coração e espírito, frente àquela baseada tão só no sangue e na linhagem.



[i] Garin, La educación en Europa 1400–1600, p. 44.
[ii] Ibidem, p. 60ss.
[iii] Ibidem, p. 58ss.           
[iv] Alfred W. Crosby, La medida de la realidad: la cuantificación y la sociedad occidental, 1250–1600, trad. Jordi Beltran, Barcelona, Crítica, 1998, p. 60. Crosby recorda que “se produziram concordâncias para as Escrituras, índices de palavras-chave e de temas para as obras dos Pais da Igreja e logo para as de Aristóteles e outros autores antigos. Quando usavam números em sua andaimaria cultural já substituíam as cifras romanas pelos novos e brilhantes algarismos indoarábicos, mesmo antes da maioria dos mercadores e banqueiros”. Ibidem, p. 60.
[v] Ibidem, p. 61.
[vi] Cf. Pierre Bourdieu, La distinción: Criterio y bases sociales del gusto, Mª del Carmen Ruiz de Elvira, Madrid, Taurus, 1991.


Do artigo “INFLUÊNCIAS MEDIEVAIS E INOVAÇÕES MODERNAS. UMA ANÁLISE MACROFILOSÓFICA” de Gonçal Mayos (traído por Karine Salgado) em ENTRE O MEDIEVAL E O MODERNO: REPRESENTAÇÕES E RUPTURAS, FILOSOFIA, CULTURA E DIREITO de KARINE SALGADO E ARNO DAL RI JÚNIOR (Organizadores), EDITORA UFMG, BELO HORIZONTE, 2019.


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