No entanto, apesar dessa rápida e genial
intuição de Deleuze e Guattari, há um consenso generalizado de que ela não é
acompanhada por análises e desdobramentos pormenorizados equivalentes aos
realizados por Foucault sobre o poder disciplinar. Preencher essa lacuna tem
sido um dos objetivos prioritários do livro A Sociedade do
Controle? Macrofilosofia do Poder no Neoliberalismo porque consideramos que hoje ainda falta uma
formulação “macro”, integrada e coerente de uma realidade por outro lado cada
vez mais evidente e inquietante, sobretudo quando estramos
no que poderíamos chamar de “sociedades de confinamento”.[2]
* * *
– As sociedades biopolíticas são baseadas em
administrar, gerir, prevenir e – definitivamente – controlar a população em
todos os momentos de sua vida cotidiana, produtiva e reprodutiva... Assim,
deslocava-se a um segundo plano, o que havia sido o objetivo político
primordial do moderno Estado-nação que se centrava em controlar, sobretudo, o
território “nacional”.
– A evolução do poder, que tradicionalmente era
exercido com castigos e ameaças de morte até versões – aparentemente mais
“humanitárias”, mas também mais eficazes – atentas, sobretudo, a vigiar e a
conduzir “positivamente” a vida (biopoder).
– A superação e a substituição das tecnologias
modernas, físicas, sólidas (Bauman) e fordistas (Gramsci) por novas tecnologias
pós-modernas, digitais, “líquidas”, flexíveis (Sennett) e pós-fordistas. Assim
veremos que o panóptico de Jeremy Bentham (sem dúvida o dispositivo clássico e
mais bem teorizado das primeiras) é superado em direção a novas e mais
poderosas versões digitais.
– A construção de uma sociedade, toda ela “de
controle”, que totalitariamente integre, sobreponha e conecte as “instituições
totais”, de confinamento e disciplinação[3]
que costumavam ter como base o panóptico clássico. Estamos nos referindo ao
desenvolvimento desde o final do século XVII até o fim do século XX das
escolas, das fábricas, das prisões, dos quartéis militares, dos hospitais ou
dos manicômios.
* * *
Os desenvolvimentos mencionados se tornaram
mais evidentes com acontecimentos históricos cruciais, como o colapso da URSS
em 1991, a evolução pragmática da China de Deng em direção ao capitalismo, a
hegemonia do neoliberalismo com as presidências de Margareth Thatcher e Ronald
Reagan e as políticas inspiradas pelos chamados “neocons”, especialmente com o
surgimento de um terrorismo global após os atentados de 11 de setembro de 2001.
Todos esses acontecimentos foram decisivos para
a genealogia das sociedades de controle, as quais tiveram um impulso-chave com
a série de crises econômicas pós 2007 e sua antecedente com a explosão da bolha
especulativa das empresas de tecnologia “.com” entre os anos 2000 e 2002. Foram
crises vinculadas à desregulamentação e à imposição do sistema financeiro sob a
governança global do chamado “Consenso de Washington”, que tensionaram
profundamente as potências desenvolvidas e que, portanto, impulsionaram sua
evolução às “sociedades de controle”.
Bem equipadas e presentes nos principais
mecanismos estatais, usaram seus enormes meios e possibilidades, para minimizar
a dissidência e o descontentamento de grande parte da cidadania e dos
movimentos sociais alternativos. Podemos destacar o salto que a eleição
presidencial de Donald Trump em 2017, sob a inspiração ideológica de Steve
Bannon, [5]
representou nessas tendências. Constatou-se que grande parte da população era
vulnerável aos mecanismos de exaltação e mobilização graças às novas
ferramentas de mineração e análise do big data (por exemplo, da Cambridge
Analytica).
Isto deu asas aos movimentos populistas
radicais (sobretudo de direita, mas não exclusivamente) e impulsionou muitas
das elites dominantes a “branqueá-los” politicamente. Percebeu-se logo uma
mudança significativa em relação à estratégia das últimas décadas que tendia a
conter, manter a certa distância e como “exército de reserva” os grupos
ultraconservadores que – daí em diante – seriam legitimados, fomentados,
instrumentalizados e incorporados em instâncias-chave do poder (por exemplo,
Vox na Espanha pós-franquista, pentecostalismo no Brasil e inclusive antes o
Tea Party nos Estados Unidos).
Essa é a batalha mais decisiva após 2020 e –
por isso – é muito importante fazer um diagnóstico realista e que permita
reconstruir as forças progressistas e preparar uma potente estratégia
alternativa. A elas dedicamos muitos dos escritos que apresentamos neste livro.
* * *
Ora, ainda que a série de crises econômicas
neoliberais pós-2007 e as estratégias ideológicas populistas sejam muito
decisivas para o advento das sociedades de controle, existem também outros
elementos de grande importância e que constituem sua condição de possibilidade.
Muitos deles estão associados ao desenvolvimento de ferramentas tecnológicas e
estratégias políticas de controle, que permitem fazer frente à crescente
ruptura do “concerto” social e à ampliação das desconfianças e antagonismos.
Assim é possível instrumentalizá-las rápida e eficientemente por grupos
conservadores que esperavam – há algum tempo – essa oportunidade e que vão de
Trump até Bolsonaro ou ao trifachito espanhol. Entre as novidades a serem
destacadas, consideramos brevemente as seguintes:
1) As novas tecnologias digitais de comunicação
romperam a verticalidade hierárquica do sistema de comunicação audiovisual
fordista, em que poucos poderosos e proativos se impunham sobre uma ampla
multidão passiva e com pouco poder. Certamente, o mundo da internet é mais
horizontal e menos hierárquico, pois são muitos que estão em disposição de agir
autônoma e proativamente, transformando os equilíbrios tradicionais. Assim se
reduzem as possibilidades tradicionais de controle hierárquico por parte do
poder e – em contrapartida – empodera-se a multidão (Negri e Hardt).
3) O mundo digital gera uma complexa
“extimidade”[7] que
abala os padrões e as experiências tradicionais do íntimo e do secreto ante o
publicamente conhecido. Cada vez menos nos relacionamos cara a cara, direta e
profundamente com outras pessoas. Além disso, trocamos esse íntimo contato
necessário por uma falsa substituição “extímica” na internet e nas redes
virtuais (que, às vezes, de “sociais” têm pouco). Essas mudanças são mais disruptivas
e têm efeitos mais radicais sobre a convivencialidade[8]
humana do que suspeitávamos até então.
4) Tais tecnologias disruptivas acentuam a
ruptura das sociedades modernas no que diz respeito aos tradicionais vínculos
hipersociais, às solidariedades coletivas e ao comunitário. Em contrapartida,
fomentam um individualismo radical, competitivo e crescentemente egoísta.
Imersos nessas novidades, as pessoas chegam a pensar que são átomos totalmente
invulneráveis que não necessitarão nunca da ajuda, da assistência e, inclusive,
da compreensão de mais ninguém. Isto gera indivíduos “bunkerizados”,[9]
com pouquíssimos vínculos humanos realmente profundos, íntimos, emotivos e
corporais. Pois são substituídos pela inflação extímica de uma multidão de
“amizades” virtuais, às vezes fictícias e construídas com inteligência
artificial, e onde aparecem bolhas e efeitos-túnel humanamente negativos.
Assim, novas tecnologias amplificam os piores aspectos da psicologia moral
humana e polarizam violentamente a sociedade. Acentuam-se as respostas
viscerais, automáticas e irreflexivas, sob pressão de grupos cada vez menores e
apartados do amplo consenso social. Ademais, os mecanismos humanos que diminuem
a agressividade pelo contato empático cara a cara, pelo uso da palavra, pela
expressão corporal não verbal e pelas habilidades convencionais perdem
efetividade. Além de facilitar a rápida exclusão do discordante (gerando os
chamados efeitos-túnel e bolhas digitais).
5) Dessa forma, tende-se a cindir a sociedade
em muitas e-comunidades construídas por consensos antagônicos viscerais (às
vezes com messianismos telemáticos) e subordinar as “solidariedades”
tradicionais cada vez mais enfraquecidas de família, classe, bairro-vizinhança,
partido-sindicato, formação, profissão e, inclusive, nacionalidade (reduzida a
compartilhar “papéis”, serviços estatais, bandeira ou time nacional). A
crescente fragmentação antagonista do espaço público (antecipado com as máfias,
seitas e tribos urbanas) evidencia o enfraquecimento do cimento e da philia
político-sociais.
6) No extremo, a soma de hiperindividualismo,
fragmentação social e perda dos vínculos empáticos comunitários leva muita
gente a pensar que pode prescindir totalmente dos que não compartilham
plenamente os valores radicalizados do pequeno grupo das redes sociais (os
outros-como-eu, o nós). Inclusive pode levar a considerar que seria positivo
prescindir desses outros-que-eu (eles), que são cada vez mais apoiadores da
redução, da fragmentação e da radicalização que comentamos. Já sabemos o que
aconteceu e aonde nos levaram essas dinâmicas na Alemanha nazista. Uma vez que
se rompe o vínculo social empático, o enfrentamento extremista converte-se em
uma possibilidade.
7) Essa fragmentação unida ao enfrentamento
extremista pode ser vista no aumento do uso cotidiano das armas, que os Estados
Unidos estão exportando ao Brasil de Bolsonaro. Exemplifica perfeitamente até
que ponto o outro, o próximo ou o concidadão é visto cada vez mais como um
inimigo potencial, o qual deve ser enfrentado ou – ao menos – mantido sob
vigilância e ameaça constantes. Nesse sentido, a simples posse de armas tem um
efeito fortalecedor e de feedback em potencial: pois a mera compra de uma arma
desperta nos indivíduos o frame[10]
(Lakoff) da ameaça, a necessária defesa e a preparação para a agressão (seja
recebendo-a ou repelindo-a). A posse cotidiana de armas tem, portanto, um
efeito psicológico intensamente negativo que facilita sua utilização cedo ou
tarde, ou ao menos reafirma a angustia ante a fragmentação social.
Significativamente, os novos autoritarismos iliberais fomentam a tendência
privada de armas, não apenas como negócios senão – sobretudo – porque assim
impõem o frame da insegurança social que facilita o sacrifício de valores de
liberdade, reconhecimento e, inclusive, redistribuindo-os em favor dos
autoritários e da segurança.
8) Por isso, nas sociedades neoliberais
avançadas é mais difícil que os diversos grupos incomunicáveis e conflitantes
aceitem sacrifícios solidários tanto na redistribuição econômica como no
reconhecimento. Significativamente vivemos um ataque frontal com as políticas
afirmativas igualitárias e de reconhecimento de direitos aos “outros grupos”.
Apenas as mulheres e o feminismo no Ocidente (não sei se se incluem o
catalanismo soberanista ou alguns grupos étnicos-raciais) têm mostrado uma
determinação capaz de impedir os primeiros grandes golpes. Em todo o caso,
devemos reconhecer que a social democracia clássica nos dias de hoje está
bastante desconcertada e sem nenhuma estratégia alternativa.
9) Essa pode ser uma explicação de porque,
atualmente, é falha a teoria eleitoral “da viagem ao centro”. Esta postulava
que a vitória nas eleições se produzia por movimentos de transferência de voto
e abstenção dos setores moderados do centro (que algumas vezes votam em uma
direção e outras na oposta). Ganhar esses eleitores decisivos impulsionava os
partidos a competir com propostas moderadas e não destinadas aos fãs nem mesmo
aos militantes, havia uma tendência de pacificar suas proposições. No lugar “da
viagem ao centro”, os movimentos políticos atuais (populismos de direita e
esquerda) estão se radicalizando nos extremos que retroalimentam as tendências
perigosas, apontadas anteriormente, e que dissolvem o cimento social no sentido
de “salve-se quem puder” e “concentra a atenção-indignação ainda que te
critiquem”.
11) Como vemos, uma vez que se rompe o vínculo
empático hipersocial, o enfrentamento extremista se converte em uma possibilidade.
Por isso, deve-se manter como algo sagrado o reconhecimento da dignidade humana
(base dos direitos humanos) incluindo aos que não são exatamente iguais a nós
mesmos porque têm outros projetos vitais. Da mesma forma que a economia é a
ciência de administrar recursos escassos suscetíveis de usos alternativos, a
política e a convivência humana se baseiam em administrar de forma pacífica
esses recursos escassos suscetíveis de usos alternativos em função dos projetos
existenciais e políticos que se confrontam pacificamente na ágora e no
parlamento público.
12) A pandemia de Covid-19 está nos mostrando
os graves efeitos das tendências que estamos apontando, especialmente nos
países – como os Estados Unidos e o Brasil – que os levaram ao extremo.
13) Constatamos que os movimentos sociais
progressistas parecem estar imediatamente em condições inferiores em relação
aos mais próximos ao poder, que manifestam atualmente claras tendências
autoritárias e dissolventes do Estado social de direito.
Portanto, consideramos que a análise das
consequências de todos os tipos de sociedades de controle e sua reversão eficaz
para salvaguardar os princípios democráticos são os objetivos mais importantes
juntos à superação da Covid-19 e da previsível grande crise econômica
imediatamente posterior.
Por isso, projetamos o presente livro como o
necessário exercício dos dias atuais de diagnosticar realista e rigorosamente
as sociedades de controle (cujo estágio superior pode ser a ameaçadora
“sociedade do confinamento”); para assim recompor eficientemente uma ampla
aliança das forças sociais progressistas e preparar uma potente estratégia de
resposta. Ora – como acontece em momentos graves como o atual – o futuro está
em jogo e toda crise é também uma oportunidade de melhora.
[1]
Traduzido do original em castelhano Nuevas bases de la Sociedad de control y
como resistirlas, por João Pedro Braga de Carvalho e Raphael Machado de Castro.
[2]
Para mais informações:
https://goncalmayossolsona.blogspot.com/2020/03/del-transportfisic-al-confinament-el.html
e https://goncalmayossolsona.blogspot.com/2020/03/
confinament-regresn-lexclusivisme.html.
[3]
N.T.: O autor faz uso do
neologismo ‘disciplinación’. Optamos por manter sua construção mais próxima na
língua portuguesa ao invés da mera utilização da palavra “disciplina”, pois
dessa forma o sentido original de uma determinação disciplinar é mantido.
[4]
N.T.: O termo usado pelo autor
faz referência à expressão políticas del desconcierto trabalhada anteriormente
no texto: MAYOS, Gonçal. ‘Políticas
del desconcierto’ y redefinición democrática. Una síntesis macrofilosófica. In:
AMAT, Joan Lara (Ed.). La ciudadanía y lo político. Ciudadanía y crisis de la
democracia liberal en un mundo en transformación. Lima: Oficina Nacional de
Procesos Electorales (ONPE) y Universidad Nacional Mayor San Marcos, 2020.
[5]
Apesar de Trump ter o demitido
como seu principal assessor, Bannon segue liderando seu ambicioso projeto de
“infraestrutura para um movimento populista global”, a partir do qual criou, em
Bruxelas, o The Movement. Estabeleceram-se contatos com movimentos políticos
conservadores nacional-populistas como o Vox da Espanha, o Rassemblement
Nacional da França, o Fidesz da Hungria, a Alternativa para Alemanha, a Liga do
Norte da Itália, o Partido da Liberdade da Áustria, além de tentar somar
líderes autoritários como Jair Bolsonaro, Vladimir Putin, o japonês Shinzo Abe,
o indiano Narendra Modi, assim como líderes do Egito, das Filipinas, da
Polônia, da Coreia do Sul...
[6]
N.T.: A expressão espanhola se
refere ao pacto de coalisão entre o Partido Popular, Ciudadanos e Vox,
personificados em seus líderes conservadores Pablo Casado, Inés Arrimadas
(antes Albert Rivera) e Santiago Abascal. Esse neologismo se forma a partir da
fusão dos termos tripartito (tripartite) e fachista (facista).
[7]
N.T.: O autor utiliza-se do
neologismo extimidad em contraposição à intimidad (intimidade). Optamos por
manter, inclusive em suas derivações, a construção mais próxima do original nos
momentos em que esses casos aparecem.
[8]
N.T.: A expressão
provavelmente faz referência aos trabalhos do pensador austríaco Ivan Illich,
autor da obra A convivencialidade, de 1986.
[9]
N.T.: Neologismo derivado da
palavra bunker, da língua inglesa, que denomina uma estrutura ou reduto fortificado,
parcial ou totalmente subterrâneo, construído para resistir aos projéteis de
guerra.
[10] N.T.: Expressão em inglês relativa aos quadros presentes nas produções audiovisuais (vídeos, jogos digitais...) que sobrepostos conjuntamente em certas velocidades geram a impressão de movimento na percepção humana.
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