Gonçal Mayos PUBLICATIONS

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Dec 18, 2019

ÓDIO, OFENSA, TORTURA E VINGANÇA: DIALÉTICA INFERNAL

O bêbado confessa: “Eu bebo para esquecer!” Mas, quando perguntado, o que é que ele odeia tanto e que precisa perder de vista tão obsessivamente? Ele tem razão em lembrar que, acima de tudo, deve esquecer a tortura resultante de beber! 

O suposto remédio tornou-se o principal desconforto, dor e doença. Obscurece qualquer outra causa que houvesse. O que começou como uma fuga de uma realidade torturante, perde qualquer referência externa e se torna uma autotortura infinita.

Algo semelhante acontece com a vingança, o ódio e a tortura.


Embora tenham uma causa legítima e uma origem externa, é muito provável que estabeleçam uma dialética tão obsessiva e autoreforçante que acabam se tornando a principal fonte de si mesmas.

Alguém se vinga porque sabe que é odiado, ofendido ou torturado. Além disso, o discurso do ódio é um ato perlocutivo linguístico: ele já realiza o que enuncia. Executa o ódio com sua simples enunciação ou existência. O discurso de ódio é já uma condição para a vingança e – inclusive – prepara-a no mundo simbólico e linguístico, que é muito real! É também um tipo de tortura - executada sobre si mesma - que trabalha para executá-la em outro.


Por isso cai facilmente em uma dialética de vingança sem fim; em que as pessoas odeiam porque odeiam, ofende porque a ofendem, tortura porque a torturaram. Inclusive se esforça para ofender porque “sabe” que em breve outra ofensa lhe chegará. Odeia porque vive tanto em face do ódio quanto dentro dele. Tortura antecipando-se a qualquer tortura hipotética. Vinga-se preventivamente e com a máxima brutalidade para minimizar que um dia possa sofrer uma vingança.

A dialética se retroalimenta e muito facilmente se “perde”  a primeira causa, a culpabilidade inicial, o crime primordial e a origem de tudo. Ninguém já sabe por que se vinga exatamente. Inclusive aparece a dúvida de se se vinga ou – simplesmente – odeia, ofende e tortura.

Desde fora (nunca por dentro!) se estende a suspeita de que lhe ofendem por que está ofendendo, odeiam-no porque odeia e querem torturá-lo porque torturou. Até suspeitam que a “vingança” não é senão uma desculpa para odiar, ofender e torturar. Continuar em uma dialética perversa, ensimesmada, sem escapatória e mesmo autotorturante!

Ódio, ofensa, tortura e vingança sempre voltam como um bumerangue. São reflexivas e recíprocas. Constróem a discórdia humana e a prolongam infinitamente.


Vingança! é o grito ressentido que se converte em destino. É o presente submetendo-se ao passado de maneira agressiva e defensiva. É a construção de um futuro sem futuro.

Vingança! expressa uma condenação digna de Sísifo, em que qualquer esforço, negociação, transação, alternativa, saída, paz, perdão, reconciliação...e rolam irremissivelmente para baixo. Aprofunda-se o ressentimento, persiste o ódio, volta a vingança, insiste-se na ofensa, retroalimentam-se o gozo e o sofrimento da tortura.

Vingança! é a condenação mais terrível e sutil: aquela que se faz a si próprio usando o “Outro” ao mesmo tempo como simulacro e dispositivo, como carrasco e bode expiatório. Converte até as gerações futuras em “deus ex maquina”, de uma dialética perversa, auto-absorvida, sem escapatória e, finalmente, autotorturante.

Chega-se a cair na loucura de odiar por vingança ante o próprio ódio. Alguém envolve-se na tortura para se vingar de não poder senão autotorturar-se com o ódio que sente e o aprisiona. Cada vez mais totalmente! Em um infernal “toujours recomencée”.

O círculo se fecha sobre si como a mais perfeita de todas as prisões. A condenação sisífica a que os humanos são dados. “O inferno são os outros”, disse Sartre, mas propriamente é a prisão autorturante que nós mesmos temos construido por sermos incapazes de conviver com os outros. Portanto, é o fracasso humano em conviver conosco mesmos.

Prefácio de Gonçal Mayos (pp. 11-19) en Discurso de ódio e vingança: Nas fronteiras da democracia de Mauro Cardoso Simões (prof. de la Universidade Estadual de Campinas), Editora Ideias & Letras, Sâo Paulo/SP (Brasil), 2021, pp. 104, ISBN: 9786587295077.

Veja as postagens:

- ÓDIO, OFENSA, TORTURA E VINGANÇA: DIALÉTICA INFERNAL 
- RECONSIDERAR A TORTURA? 
- CORTE O CÍRCULO DE ÓDIO, VINGANÇA E TORTURA

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