Sobre Vingança, Discurso de ódio & Tortura nos oferece uma detalhada fenomenologia e sociologia desses fenômenos complexos. Em sua análise, o professor Simões assume a condenação moral da vingança, ódio e - evidentemente – da tortura.
É por isso que ele se concentra em analisar como - apesar da rejeição ética - múltiplos fenômenos de vingança, práticas de discurso de ódio e tortura persistem em nossas sociedades. Indo um pouco além, ele se questiona sobre sua condição de possibilidade e por que algumas de suas práticas mais abjetas são executadas mesmo em regimes que se pretendem democráticos.
O professor Simões parte de exemplos clássicos e fontes literárias, para analisar fatos perturbadores de nosso presente, como as torturas em Abu-Ghraib, onde foi aplicada uma lógica astuta que procurava ocultar sua violência intrínseca. Como reflete agudamente, em vez de exercer força sobre o corpo dos torturados, obriga a este (de maneira premeditada e sob ameaça de morte) a forçar seu próprio corpo a posições dolorosas e degradantes - que não podiam modificar.
“Não se trata de infligir ferimentos ao prisioneiro usando força externa. Em vez disso, a técnica usada em Abu-Graib transferiu a força para o corpo do prisioneiro, que inflige a dor a si mesmo. A ameaça de violência extrema mobiliza medos, que levam a pessoa a permanecer em uma posição que a leva a sofrer agonia. O capuz, que era um saco de dormir usado, rouba do prisioneiro não apenas a visão e a orientação, mas também afeta seu senso de equilíbrio”.
Todos nós que vimos as fotos de Abu-Ghraib ainda as temos impressas em nossa memória. Mas, em vez disso, nos fazem falta totalmente muitas outras violações contemporâneas desumanas. Não as temos do assassinato anterior de Jamal Khashoggi e muito poucas, por exemplo, de Guantánamo, também limitados a situações aparentemente vazias de violência.
Mas todos sabemos e registramos todos os dias que essas práticas desumanas continuam. Simões analisa as tentativas atuais - mesmo em estados supostamente democráticos - de reconsiderar a proibição da tortura e praticá-la em áreas mais ou menos paralelas, sem garantias ou autorização judicial. São o caso, por exemplo, do Ato Patriótico (Patriotic Act) aplicado pelos Estados Unidos, mas também de posturas mais instrumentais, como a defendida pelo presidente espanhol Pedro Sánchez, quando afirmou querer compatibilizar o assassinato brutal de Khashoggi pelas autoridades sauditas com “defender o interesse dos setores estratégicos espanhóis”.
O professor Simões analisa detalhadamente e rigorosamente as argumentações que desejam rever a proibição da tortura a partir do sempre hipotético e radical “cenário da bomba-relógio”. Recorde-se: a corrida contra o relógio para evitar um atentado que supostamente mataria muitas vítimas. Imediatamente entra-se no cálculo utilitário quantitativo de “vantagens e desvantagens” sobre os métodos utilizáveis, onde “os fins justificariam os meios”.
Com isso se esquece - lembra Simões - que “aqueles que são torturados ficam torturados para sempre. Se você deseja criar terroristas, a tortura é uma maneira bastante certa de fazê-lo”. Facilmente se esquece que o pior da tortura é a dialética radicalmente destrutiva que explicamos; Pois se retroalimenta - junto com o ódio, a ofensa e a vingança - em um círculo vicioso que se fecha facilmente sobre si mesmo e sem escapatória.
Pois, como belamente diz Jean Améry (e Simões cita): já com o primeiro ato de tortura se “perde algo que talvez chamaremos temporariamente de ‘confiança no mundo’” e “uma parte de nossa vida termina e nunca mais pode ser revivida”.
Prefácio de Gonçal Mayos (pp. 11-19) en Discurso de ódio e vingança: Nas fronteiras da democracia de Mauro Cardoso Simões (prof. de la Universidade Estadual de Campinas), Editora Ideias & Letras, Sâo Paulo/SP (Brasil), 2021, pp. 104, ISBN: 9786587295077.
- ÓDIO, OFENSA, TORTURA E VINGANÇA: DIALÉTICA INFERNAL
- RECONSIDERAR A TORTURA?
- CORTE O CÍRCULO DE ÓDIO, VINGANÇA E TORTURA
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This waas lovely to read
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