CORTE O CÍRCULO DE ÓDIO, VINGANÇA E TORTURA

A racionalização da vida sob o estado moderno prometeu cortar a interminável dinâmica social das vinganças, ódios, ofensas e tortura. A Organização das Nações Unidas globalizou essa mesma aspiração, incluindo guerra, extermínio, limpeza étnica, genocídio...

Mas, como Mauro Cardoso Simões observa em Sobre Vingança, Discurso de ódio & Tortura, estamos diante de barbáries desumanas que persistem, embora muitas vezes de maneiras encobertas. E, portanto, devem ser pensadas profundamente. Além da vingança, o discurso de ódio ou a tortura não foram plenamente eliminados hoje. Sobrevivem perturbadoramente, são justificados e até renascem com força incomum.

A institucionalização da justiça não conseguiu eliminá-las, embora se distancie dos envolvidos e trate os conflitos “profissionalmente” (porque não é de tudo “neutra”) no âmbito da lei. Em grande medida - diz o professor Simões – “a justiça moderna e contemporânea deixa a pessoa ofendida com seu sofrimento, mesmo quando a lei é aplicada”.

Certamente - além de multas, reclusões e indenizações monetárias - a aplicação moderna da justiça tem esquecido de compensar adequadamente os danos morais, simbólicos, subjetivos e de grupo. Com isso - a justiça majoritária hoje em dia - deixa aberta a ferida humana e social que pode reabrir a dialética terrível e autodestrutiva que denunciamos acima.

Isso facilita o retrocesso para estágios que acreditamos erroneamente ter sido superado. Mas, “Nas sociedades sem uma autoridade política central, a vingança não era uma relação entre dois indivíduos, mas entre dois grupos. Era coletivo, não individual”. Ou porque não existem instituições superiores de justiça ou não são plenamente efetivas, reaparece o “vingador” que não pede que as instituições reconheçam seu sofrimento e o compensem; ele age fora das recomendações institucionais”.

Mesmo nas sociedades hiperindividualizadas de hoje, o discurso de ódio que busca a ofensa coletiva persiste: “Para homofóbicos, assim como para racistas e sexistas, os crimes acontecem entre ‘nós’ e ‘eles’, ao invés de ser apenas entre ‘eu’ e ‘você’”. Conforme registrado no relatório da Anistia Internacional de 2014 (citado por Simões): os “indivíduos são torturados por causa de suas opiniões políticas ou porque usam sua liberdade de expressão. As pessoas pertencentes a um grupo religioso ou outro grupo minoritário em particular, ou alvo por causa de sua identidade, também enfrentam um risco aumentado”.

Na base da atual sobrevivência (e até mesmo crescimento) dos fenômenos de ódio, ofensa, vingança e tortura, persiste a política como entendido por Carl Schmitt. Recorde-se: era uma antagonização entre um “nós” e um “eles”, que foi construída a partir da designação por parte do “Soberano” de quem são e devem ser os “amigos” e a quem corresponde ser os “inimigos”.

Agora esse tipo de política não cura ou evita injustiças, mas as amplia, dando-lhes consistência “tribal” e impulsionando a luta entre leviatãs e comunidades. Isso vai além da dialética desumana que denunciamos de ódio, ofensa, tortura e vingança de indivíduos e coletividades. Por isso é especialmente dilacerante a debilidade de uma Organização das Nações Unidas que é inoperante para estabelecer justiça nesse nível.

Pois quando não há eqüidade mínima na sociedade, a vingança é a única justiça. Então retrocedemos ao funcionamento do mundo durante milênios, em que a vingança era a única vindicação possível para os vulnerados. Recordemos - com Simões - que “a palavra vingança vem do latim ‘vindicare’: reivindicar justiça”.

Agora, se o perigo de vingança da vítima ou de sua família era então o único medo dos poderosos, também se tornava facilmente o prazer cruel de torturar os frágeis com muito poucos riscos. Ao final, reapareciam as dialéticas desumanas e autotorturantes que explicamos. Foram conduzidos performativamente em um círculo incessante de ódio, ofensa, tortura e vingança.

Prefácio de Gonçal Mayos (pp. 11-19) en Discurso de ódio e vingança: Nas fronteiras da democracia de Mauro Cardoso Simões (prof. de la Universidade Estadual de Campinas), Editora Ideias & Letras, Sâo Paulo/SP (Brasil), 2021, pp. 104, ISBN: 9786587295077.

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